Melhor começar por dizer “à cabeça” que não tenho qualquer simpatia por António Vara. Nem por José Sócrates, nem por toda a clique que dirigiu Portugal, fosse por estar investido de poder político ou financeiro, ou ambos. Nesse aspeto, estou com João Miguel Tavares, como, aliás, esteve todo o país, exceto quem ainda hoje fala de salazarismo mas é, na verdade, um reacionário de esquerda.

Sim, eles existem. Travestidos de intelectuais ou “seres pensantes” de Portugal. Que se arvoram em autoridades sobre quem deve e pode falar dos vícios e pecados do país. Porque os há. E um chama-se corrupção impune. Talvez o maior e que começa com o nepotismo que afeta mais a esquerda do que a direita. E só quem quiser ignorar as evidências é que pode disputar estes factos. Começa na Justiça. Ou, pelo menos, passa por ela.

Numa audiência bem-humorada, eis que aparece Armando Vara a queixar-se do sistema. Tem razão Armando Vara. A meu ver porque a Justiça quando fala, fala para todos. É essa a condição de Democracia. E quando lemos o acórdão do tribunal da relação, em que agrava a caução de Vara por: i) ainda haver um risco de fuga (apesar de Vara estar preso); ii) justificá-lo porque Vara será solto antes que haja um desfecho da Operação Marques e aí sim, pode fugir; e iii) porque este tem negócios na Guiné-Bissau e pode usá-los como plataforma de fuga, vemos que está tudo errado.

Como pode a Justiça aplicar cauções cuja justificação é, essencialmente, prevenir o risco de fuga quando o penalizado já está preso? E justifica tal decisão com as ineficiências da própria Justiça? A tentação é grande, tratando-se de António Vara. Tratando-se do país do qual há dez anos nos tentamos libertar. O país da corrupção, do devaneio económico, do favor e do privilégio. Mas não é este o caminho.

Na Comissão de Inquérito à Caixa Geral de Depósitos ouvimos um Armando Vara surpreendentemente bem-humorado falando da Justiça na ótica do utilizador. Atraídos pelo resultado tentador – todos queremos o castigo de quem falhou com o país – é essencial para a democracia escrutinar o processo. Porque o processo diz-nos respeito a todos. É o processo que estabelece os limites da irracionalidade, do enviesamento. É a lei que nos salva a todos. Os bons dos maus. Os inocentes dos culpados. A Justiça da perversão da espuma dos dias.

Como todos os portugueses, anseio pelo dia em que se corta a cabeça à corrupção. Mas isso não se faz pendurando exemplos pela cabeça. Deturpando a Justiça para servir o populismo. Faz-se antes. E muitos haverá que hoje, ainda livres e “no sistema”, se envergonham pelo silêncio quando podiam agir. É sobre esses que deviam escrever rábulas e pedir responsabilidades. É a esses que ainda nos resta pedir responsabilidades ou, pelo menos, fazer pender o peso da “accountability”.

Se as Comissões de Inquérito prestam um papel relevante nessa prestação de contas a quem já todos percebemos que as têm de prestar, anseio pelo dia em que cada um de nós fará do desígnio da ética o novo reacionarismo.