A Constituição estabelece o princípio de separação de poderes fixando em exclusivo o poder judicial nos tribunais. Cada poder de estado é impenetrável e não pode ser condicionado por terceiros. Não é contudo um poder arbitrário e deve ser gerido com cautela como qualquer outro. O que significa que pode ser criticado, particularmente em condições em que as consequências das decisões podem ultrapassar a dimensão do respetivo poder nos casos em concreto. Tal acontece quando os limites objetivos são ultrapassados pelos protagonistas.
Esta semana tem sido dominada pelo início de um mediático julgamento em que, além de um membro do próprio sistema judicial, se juntam outros relevantes protagonistas, um dos quais é alto dignitário de um outro estado, com o qual Portugal tem relações especiais passadas e presentes.
Sem qualquer envolvimento pessoal ou apreciação do caso concreto, e deixando à justiça portuguesa o que é da justiça portuguesa, há uma vertente profundamente relevante em que este julgamento nos deve fazer parar para refletir, tirando a emoção da equação e impondo a racionalidade.
Reflexão que exige uma ponderação suplementar ao ver como os agentes da justiça portuguesa se referiram a um sistema judicial de um estado terceiro, afirmando que não confiavam no poder judicial angolano. Não se nos afigura legítima nem própria esta posição na relação entre estados soberanos.
A situação atual assume contornos surreais. Um julgamento – com acusações graves de corrupção – ameaça envenenar as relações entre Portugal e Angola. Relações que vão muito além das relações diplomáticas, comerciais e históricas.
Portugal pretende levar a julgamento um ex-vice-presidente de Angola. Portugal declara que não confia no sistema judicial de Angola. Portugal aliena as relações com um país onde cerca de, pelo menos, 100 mil portugueses ganham a vida e onde algumas centenas de empresas portuguesas sustaram a sua insolvência por se terem instalado naquele país.
Esta situação pode deixar marcas muito negativas nas relações entre os dois estados. Estamos em crer que faria sentido que o processo fosse remetido à justiça daquele país para a apreciação respectiva, como aconteceria provavelmente com outro país qualquer.
Não podemos usar um processo grave para dar lições de isenção ou de superioridade, ou para responder à vox populi. O caminho que o processo tem levado assenta mais em gestão de sensibilidades do que em questões jurídicas, e essas não devem contribuir para aniquilar uma relação entres estados construídas milimetricamente ao longo dos anos, de forma tão difícil e rendilhada. Não cremos que seja em nome da justiça. Haja bom senso.