O alarido em torno da requisição civil do Zmar, em Odemira, para alojar pessoas em isolamento profilático devido à pandemia, lançou, mais uma vez, o alerta para as condições alarmantes em que imigrantes oriundos de países como o Nepal e Bangladesh são introduzidos em Portugal através de redes de tráfico humano, explorados como mão de obra barata pelos seus empregadores no setor agrícola sazonal.

Não tem sido por falta de aviso. A comunicação social tem feito o seu trabalho desde há anos em denunciar os esquemas de entrada e as condições indignas de habitabilidade, agravadas pela pandemia.

O sistema que foi sendo implementado ao longo dos anos no Alentejo (e não só) não é muito diferente do sistema “Kafala”, que está em vigor em muitos países do Golfo Pérsico e Levante. Criado na década de 50 para efeitos de controlo de migração, a “Kafala” tem sido a principal responsável por formas modernas de escravatura, já denunciadas há muito por organizações de direitos humanos. Os empregadores são considerados patrocinadores da entrada do migrante e estes trabalhadores não são considerados cidadãos com direitos sociais, vivendo num sistema à parte e completamente à mercê de quem os emprega.

É um sistema absolutamente racista que escraviza milhares de indivíduos oriundos do Sri Lanka, Etiópia, Bangladesh, Nepal, sendo os homens encaminhados para o setor da construção – como julgam que o Qatar tem obtido a mão de obra necessária para a construção dos estádios e infraestruturas necessárias para o Mundial 2022? –, ao passo que as mulheres são direcionadas para o trabalho doméstico.

Em comum, a forma como são tratados, i.e., como sub-humanos, a quem é confiscado o passaporte e subtraídos todos os direitos, correndo perigo de vida, sendo forçados a trabalhar o número de horas que o empregador entender – o filme “Kafarnaum”, da cineasta libanesa Nadine Labaki, expôs as condições brutais de exploração de mulheres etíopes no Líbano, muitas das quais aprisionadas em centros de detenção em Beirute.

No Alentejo, tem vindo a instituir-se uma variante da “Kafala”. Muitas das empresas intermediárias que trazem estes trabalhadores para Portugal, por via terrestre e aérea, cobram quantias exorbitantes pela legalização e depois encaminham-nos para empresários que os empregam em trabalhos que ninguém quer fazer, seja a nível agrícola (em zonas do litoral), seja noutro tipo de trabalhos precários nas grandes áreas urbanas (como estafetas, motoristas, na restauração, etc.).

Não podemos continuar a fazer vista grossa a um sistema com graves implicações sociais que pode levar a um aumento do sentimento anti-imigração, facilmente aproveitado por populistas.

Estes imigrantes não têm de ser escravizados ou enganados para obterem o direito de residir em Portugal. Cabe ao Estado reforçar a legislação para fiscalizar ou desmantelar as empresas abutres intermediárias, e permitir a criação de habitações públicas dignas, em colaboração com as autarquias, para acolhimento de trabalhadores sazonais em áreas agrícolas.

Temos todas as ferramentas ao dispor para pôr fim a esta forma de escravatura que está à vista de todos. Não é apenas uma questão social, é também uma questão de direitos humanos.