Agora que o “grande êxito televisivo, Sócrates: o Auto de Fé”, terminou, e que entramos na semana em que se celebra a memória de Abril, é altura de analisarmos o que fica da liberdade e da justiça após os três (foram três, certo?) programas que mantiveram presos ao ecrã grande parte da população, num pico de audiências recorde.
Ponto prévio: não sou juiz e desde muito cedo aprendi que num Estado de Direito os poderes são autónomos e independentes. Ensinei aos meus filhos que aquela senhora com uma balança à porta dos tribunais representava a justiça e, como tal, estava vendada para demonstrar que é imparcial, e semidesnuda para simbolizar que nada tinha a esconder. Confesso que nos últimos tempos não tenho passado por nenhum tribunal, por isso não posso jurar, mas, pelo que vi na semana passada, estou em crer que a senhora estará em pelo e a venda só lhe cobre um olho.
Como é possível que em pleno século XXI se assista e se aplauda um auto de fé em nome do interesse público? “Ah mas o homem foi primeiro-ministro e roubou, desviou e aquilo era um polvo de corrupção e…”. Não sei, mas interessa-me saber, enquanto cidadã, o que se passou e o que daí resultará. Mas o “daí ” cabe à Justiça, aos tribunais, nunca à praça pública!
A dada altura assisti, incrédula, à declaração das jornalistas que afirmaram saber da ilegalidade da utilização das imagens, das escutas e da construção mediática daquele processo, mas justificando o ilícito com o “interesse público”. Dito assim, ficámos a saber que a Justiça a elas não lhes mete medo porque, no fundo, a Justiça “sommes nous les media”.
Aqui não posso deixar de recorrer ao que aprendi em termos de deontologia jornalística para dizer que não, esta não é uma atitude eticamente correta, como não o são as imagens da dor alheia passada até à exaustão, ou a entrevista nos locais dos acontecimentos mais dramáticos às vitimas e seus familiares. Não há, em nenhum destes casos, o objetivo único de informar mas sim o de chocar, de suscitar uma comoção coletiva, um exacerbar de atitudes, reações.
Hoje o julgamento de um ex-primeiro-ministro, amanhã o de um jovem árabe, depois o meu ou o de qualquer um de nós. A presunção de inocência acaba a partir do momento em que os media apontam o dedo numa determinada direção. Uma vez condenado em praça pública, a pena é perpétua e estigmatizante.
Assusta-me viver num país onde a Justiça dorme com a comunicação social numa promiscuidade que subverte os mais elementares princípios da liberdade e da cidadania. Repito: quero saber de facto o que aconteceu em Portugal e que deu origem a uma mega operação de investigação apelidada de Marquês. Mas quero sabê-lo pelos meios próprios e no seu epílogo.
O que retiro dos três episódios desta lamacenta história é que nos foi apresentada uma mega rede de corrupção entre funcionários do Ministério Público e os media, com culpados a assumir a sua culpa em direto. Como cidadã, exijo que sejam aplicadas as devidas sanções quer aos “jornalistas” quer ao Ministério Público, a quem cabe descobrir no seu interior, e com caráter de extrema urgência, a origem das fugas de informação e os seus objetivos, pois que os almoços nunca são grátis.
Até lá fica o medo de podermos retroceder aos tempos do espetáculo público da Justiça, de entrarmos num estado kafkiano, onde todos são culpados.