I Acto

O cenário: Paris, o Triangle d’Or, a arquitectura Haussmann. Aquelas ruas já viram o reinado dos Bourbons, a Tomada da Bastilha, a ocupação nazi e o Maio de 68. Se há cenários com história e sangue, este é um deles. A violência urbana e a contestação social, em França, não é uma temática nova. No passado recente, já vimos carros a arder e pilhagens. No coração da capital, com esta fúria, não se via há cinquenta anos.

Os estilhaços, no chão, não são só de vidro. A sociedade também está estilhaçada, pelo chão. Os blindados e o gás lacrimogéneo testemunham o anacronismo dos tempos, os directos contínuos e as redes sociais fazem o resto. As câmaras da TV, em 4K, fazem o travelling pictórico hiper-realista, repetido ad nauseam, da violência urbana e da perfusão emocional que irá perdurar na nossa memória.

II Acto

A analepse: como chegámos aqui? Macron trabalhou na Inspecção de Finanças, foi funcionário de private banking do Banco Rotschild e ministro da Economia de Hollande, mas representa (?) a Esquerda que ganhou, à segunda volta, as eleições à candidata de extrema-direita, numa inexplicável e irrepetível espiral de eventos. Macron ganhou a vender um sonho, sem qualquer base eleitoral sólida e foi-se afastando dos seus eleitores, dando-lhes uma overdose de impostos, que subiram para todos mas baixaram para as grandes fortunas. Fez o contrário do que prometeu.

A revolta veio do povo, dos pequenos empresários, comerciantes e industriais. As grandes fortunas quase não pagam impostos. Lá como cá. As grandes empresas tecnológicas quase não pagam impostos. Lá como cá. Sabem, como ninguém, andar na borderline da legislação e andar à frente. Precisávamos de dez Vestager, mas só temos uma. Pagar impostos, na Europa, está a tornar-se coisa de pobre. E de PME. A Europa tem aqui um enorme problema para resolver.

O foco da Europa está no Eurogrupo, as pessoas ficaram de fora. Tornaram-se periféricas. O poder económico sobrepõe-se claramente ao poder político e desdenha-o. O défice orçamental está a ser pago através do aumento de impostos que afecta os mais frágeis, alargando a dicotomia económica da sociedade francesa cuja classe média está cada vez mais depauperada. O mimetismo e a colagem ao Maio de 68 estão lá, com a ocupação da rua, dos liceus e das universidades. Macron subestimou a rua e não tem um discurso estruturado para os seus eleitores. Muitos dos que foram entrevistados diziam não perceber o discurso de Macron.

A França mudou. O tempo de Rohmer e “Pauline à la plage” já não existe e o de Téchiné e Malle também não. Thomas e Virginie são um casal absolutamente normal que, entrevistados pela M6, dizem não compreender o discurso. A violência segue imparável. Em plena auto-estrada, há um homem que sai do carro e se ajoelha na faixa do meio. A ele juntam-se outros, bloqueando tudo e todos. Deixo o resto da analepse para os sociólogos que têm aqui matéria infinita. Passámos de la vie en rose para noir.

III Acto

A prolepse: do Eliseu à banlieu parisienne são menos de dez quilómetros, mas a distância socioeconómica é superior a dez anos-luz. Macron recuou para onde não há recuo e tem agora que “ler” a rua, o que nos dias de hoje é um exercício de enorme humildade, profundidade e solidão. Difícil e muito raro. Macron tem que trazer os franceses para dentro do perímetro da esperança e da vida possível que lhes prometeu. E que lhes deve. A extrema-direita espera o seu momento.

Macron anunciou medidas imediatas como o aumento do salário mínimo, a redução dos impostos sobre o trabalho extraordinário, entre outras. Não explicou como vai acomodar essas medidas no orçamento, nem como as vai explicar ao Eurogrupo, nem as quantificou no défice. Apenas se sabe que o novo imposto GAFA (sobre a Google, Apple, Facebook e Amazon) valerá, segundo o ministro Le Maire, aproximadamente 500 milhões de euros. Não chega, é preciso mais.

No Eliseu, Macron sobe a escadaria Murat, trabalha no Salão Dourado e vai ter que fazer escolhas. E os franceses também. É um caso raríssimo, mas em França não seria a primeira vez. Por vezes, os peões fazem xeque ao Rei… será mate?

Your move, Monsieur Macron.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.