Para que fique bem claro, a Constituição não se limita a proibir a censura. Ela proíbe todo e qualquer “tipo ou forma de censura”, que impeça ou simplesmente limite o exercício das liberdades de expressão, informação e criação cultural. Quer as formas mais duras e agressivas, representadas simbolicamente pelo “lápis azul” da Comissão da Censura, instituída em 1926 pela ditadura militar e redefinida como Comissão do Exame Prévio por Marcello Caetano. Quer as formas mais suaves e benevolentes, como a que em 2017 – aparentemente com o beneplácito de um ministro do governo português – foi exercida pelo “lápis cor-de-rosa” da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).

O princípio subjacente a ambas as Comissões é o mesmo: há uma entidade de natureza administrativa que se pronuncia sobre conteúdos (sejam factos, ideias ou opiniões) que se destinam a ser ou foram já publicados. A circunstância de, no primeiro caso, a Comissão deter poderes de autoridade ─ e, portanto, ter a faculdade de proibir a publicação ─ e de, no segundo caso, se limitar a fazer uma recomendação pública de retirada de livros do mercado, pouco altera a natureza da intervenção administrativa efetuada. Assim como o carácter prévio ou a posteriori da censura pouco muda quanto à essência da mesma.

Em ambos os casos, o Governo – perante quem respondia a antiga Comissão da Censura e responde a atual CIG ─ arroga-se o direito de decidir o que pode ou deve ser publicado, o que pode ou deve ser lido pelos cidadãos, a que conteúdos é bom ou mau os cidadãos terem acesso, o que é benéfico e o que é prejudicial para a formação cívica das pessoas. Censura é censura, independentemente da cor do lápis que faz o risco: o azul mais autoritário e viril ou o cor-de-rosa mais complacente e carinhoso. Censura é censura, independentemente de se tratar de uma obra do Saramago ou de uns livritos de atividades para crianças.

Ainda que o Governo assobie para o ar, importa sublinhar que esta CIG – que, fruto de uma reforma administrativa por fazer, continua a conviver pacificamente com a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) e com a Comissão para a Igualdade contra a Discriminação Racial (CICDR) – não é sequer uma autoridade administrativa independente. Como serviço público integrado na denominada administração direta do Estado, ela atua sob a direção do Governo e é responsável por pôr em prática a política deste em matéria de igualdade. Tal como o antigo Secretariado Nacional de Informação estava sob a batuta direta do Presidente do Conselho, também a CIG está localizada na Presidência do Conselho de Ministros. Nada de confusões, portanto, com as competências de proteção de direitos fundamentais que a própria Constituição comete a entidades independentes como a Comissão Nacional de Eleições, a Comissão Nacional de Proteção de Dados ou mesmo a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

É evidente que a igualdade entre homens e mulheres é um valor constitucional básico e que são legítimas e até devidas medidas destinadas à sua promoção efetiva, no trabalho, na política, nas empresas e na sociedade em geral. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra, porque a defesa desse valor básico – como aliás de muitos outros inscritos na Lei Fundamental – de modo algum pode autorizar a que as mensagens explícita ou implicitamente desigualitárias que circulam no espaço público sejam rastreadas por um serviço administrativo e depois oficialmente proscritas. Isto é, essas mensagens podem ser criticadas – de forma severa e se necessário até agressiva ─, mas não podem ser formalmente censuradas pelo poder político, por mais benevolente e bem-intencionada que essa censura pretenda ser.

Não se esqueça que todas as censuras alguma vez instituídas estiveram sempre ao serviço de um bem maior, como, na Constituição de 1933, a não perversão da opinião pública e a integridade moral dos cidadãos. Nunca visaram impor as convicções do censor e do poder religioso ou profano que o sustentava, mas sim proteger os indefesos destinatários das mensagens perversa e insidiosamente difundidas pelos censurados.

Nenhuma causa, por mais meritória que seja ─ como a promoção da igualdade entre homens e mulheres e o inerente combate aos estereótipos de género ─ justifica atos de índole censória, por mais cor-de-rosa que seja o traço que cruza o conteúdo banido. É essa, como devia ser óbvio, a essência da liberdade de expressão.