António Costa tem revelado uma assinalável habilidade política. Desde logo porque alcançou um arranjo parlamentar inédito no regime, ao conseguir o apoio das esquerdas. Mas os seus talentos foram mais longe ao conseguir impor uma política de rigor orçamental sem perder o apoio daquelas, que, embora persistindo numa crítica retórica aos ditames de Bruxelas, mantêm o apoio ao Governo. Apoio que persiste, apesar da aproximação recente do Executivo ao partido imediatamente à sua direita, agora que tem à sua frente uma liderança disposta ao diálogo.

A gestão destes equilíbrios tem, todavia, um preço e o PS teve que fazer cedências para manter a esquerda domesticada e satisfeita. Compensou-a, portanto, mostrando abertura para legislar sobre os chamados temas fracturantes, que lhe são caros.

Colectivista em matérias económicas e sociais, a esquerda é radicalmente individualista nos valores, menos por um respeito intrínseco pelo indivíduo do que por uma posição ideologicamente preconceituosa, sustentada no pressuposto de que os limites legalmente estabelecidos em matéria de valores são resultado de uma perniciosa influência religiosa, que o seu laicismo militante e empenhado pretende suprimir. Invocando embora os direitos individuais como finalidade das suas propostas, a esquerda pretende sob este pretexto manter ocultos os objectivos de engenharia moral que verdadeiramente motivam o seu afã legislativo nestas matérias.

Com efeito, a lei da Procriação Medicamente Assistida, que mereceu recentemente o chumbo parcial do Tribunal Constitucional, padece de um pecado original, ao pôr em choque interesses conflituantes, pois ao reconhecer o direito à concepção com esperma de dador anónimo, nega ao indivíduo que nascer o direito de conhecer a sua identidade, pois a paternidade não é apenas um vínculo afectivo e social, mas também, e antes de mais, um vínculo biológico. Os direitos individuais de uns sobrepõem-se e eliminam, desta forma, os direitos de outros.

No que concerne à eutanásia, esta é apenas na aparência uma escolha individual. Alegam os que a defendem que um indivíduo, na plena posse das suas faculdades intelectuais tem o direito, na fase derradeira da vida, de antecipar o seu fim, no exercício de uma opção livre e consciente. É, porém, um argumento enganador, pois factores externos ao sujeito podem condicionar a sua decisão. As dificuldades causadas à família pela doença e o fardo económico que muitas vezes acompanham as doenças graves e as situações de dependência que destas frequentemente resultam, são factores limitadores da liberdade de escolha.

Por outro lado, a banalização da eutanásia é outro dos perigos decorrentes da introdução desta prática, agravando a pressão sobre as pessoas com doenças graves. Corre-se o risco de  que um indivíduo que pretenda, por simples e natural desejo de viver, ou por motivos religiosos, morrer de morte natural, se sinta constrangido, por um conceito socialmente convencionado de qualidade de vida, para além do qual seja considerado inadequado permanecer vivo, a pôr termo à vida antes que a Natureza, ou Deus, conforme as convicções de cada um, assim o determine.

Os efeitos perversos que decorrem, para os homens e para a sociedade, deste relativismo ético elevado à condição imperativa de lei são potencialmente enormes, maiores certamente do que os arranjos parlamentares que um Governo, conjunturalmente, queira assegurar à sua custa para garantir a sobrevivência.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.