Não é preciso concordar com tudo o que o historiador israelita Yuval Noah Harari conta nos três bestsellers que têm encabeçado os tops de ensaio das livrarias nos últimos meses. Nem com todas as suas conclusões. O mais importante é notar que aquilo que conta e conclui sinaliza a desmontagem dos pilares em que assentou até agora o funcionamento da esfera pública em que vivemos desde o início da modernidade. Os valores políticos da liberdade, igualdade e fraternidade com que nos governámos mais à direita ou mais à esquerda estarão doravante em causa precisamente onde antes os julgávamos imunes a qualquer sobressalto, na sua base pré-política: possuirmos todos livre-arbítrio, a mesma biologia e a mesma autonomia individual.

No futuro estas três condições poderão ser muito relativizadas ou mesmo abolidas. Mas estarem em causa significa também saírem desse plano alegadamente pré-político para entrarem no domínio da escolha colectiva e, portanto, da política. Diante deste alargamento de possibilidades, a impressão é de vertigem e podemos adoptar uma atitude de pessimismo lúcido ou uma de optimismo angustiado, mas provavelmente o melhor é tentar seguir um meio caminho, contrabalançando diagnósticos deprimentes com algum ânimo encorajador.

O ponto, portanto, é que onde não a imaginávamos até há bem pouco tempo, a politização tornar-se-á um imperativo, se quisermos que as nossas vidas continuem nas nossas mãos. A consciência a adquirir é a de que, futuramente, nenhum aspecto da vida humana está a salvo de incorporar lógicas de poder. Os ADN capitalistas, os prodígios de nascimento, saúde e longevidade serão dos ricos, em contraste com os ADN dos pobres, condenados a “subnascer”, tal a pobreza biológica que trazem de herança.

Por isso, no futuro, não será por mais ou menos igualdade mas por igualdade, nem por mais ou menos liberdade, mas por liberdade, e, por arrasto, pela fraternidade que sem aquelas não é nada, que teremos de batalhar. E antes disso, pela  própria persistência da capacidade de sermos sujeitos de escolhas e por elas batalharmos. Tudo no humano poderá ser político, como poderá nada restar, nem de político nem de humano. Mas não haverá fronteiras fixas, dadas por lei religiosa ou da natureza. Este é o tema do pós-humanismo.

Liberdade

No futuro, vamos ter de nos bater pela liberdade que até agora não podíamos limitar aos outros indivíduos. Não é que alguma vez tenhamos sido realmente livres, mas bastava a crença de que seríamos livres e a certeza de podermos agir como se fôssemos livres.  A menos que se faça alguma coisa, esta possibilidade terá os dias contados. A prazo, algoritmos conhecer-nos-ão melhor do que nós próprios, o que chegará para pôr em causa esta nossa crença de que somos, mesmo se ilusoriamente, indivíduos dotados de um livre-arbítrio irrenunciável.

Jean-Paul Sartre, o existencialista que se quis ver como filósofo da liberdade, via nela o estofo irrenunciável da consciência. Por isso, dizia: estamos condenados à liberdade. Tão igualitariamente condenados à liberdade como à mortalidade. Mesmo uma arma apontada à cabeça não elimina a alternativa de se dizer não. Aliás, quanto menor o leque de escolhas, quanto mais tensa, mais a escolha era livre. Representava-se assim a liberdade heróica da guerra, das mulheres e homens da resistência. Não se trata, obviamente, da liberdade entediante, do supermercado liberal, da escolha entre mil coisas mais ou menos igualmente indiferentes, que Cornelius Castoriadis denunciava ainda há um par de décadas em “A Ascensão da Insignificância”.

Nem Sartre, nem Castoriadis apresentam o terreno novo em que o debate terá de correr. Mas, mais extraordinário é notar que esse terreno que dizemos novo remonta aos debates medievais sobre livre-arbítrio. Extraordinário, mas não completamente surpreendente. Harari fala-nos de “Homem Deus” e precisamente aqueles debates colocavam-se porque Deus era uma realidade dada por adquirida e que implicava desafios ao humano. Como pode Deus ser omnipotente e presciente e, ao mesmo tempo, restar-nos um livre-arbítrio? Como poderia eu ter livremente escolhido beber tinto em vez de branco se Deus, na sua presciência, já conhecia a minha escolha, todas as minhas escolhas, as mais heróicas e as mais indiferentes?

Santo Agostinho deu-nos uma linha argumentativa de cristalina simplicidade e pertinência para os horizontes que se perfilam. Se o meu conhecimento de alguém me torna senhor de uma certa capacidade, certamente bastante limitada e falível, de previsão do que serão as suas escolhas, e de facto é assim com os nossos filhos, mães e cônjuges, então como não esperar uma capacidade dessas, mas infalível, ou perto disso, da parte de um conhecimento divino total, ou seja, de cada memória, cada tonalidade afectiva, cada emoção e também de cada sinapse, cada catião e anião a correr nela, e ainda do ambiente em redor, e de toda a sua história, e de toda a mais ínfima alteração?

E como não situar, entre a nossa capacidade falível e a de um Deus, a de algoritmos que admitimos poderem conhecer-nos muito melhor do que um cônjuge, uma mãe, nós próprios. E na verdade desde quando foi relevante, humanamente relevante, uma pessoa considerar-se livre além do que ela pode conhecer-se a si mesma? Mas, por isso mesmo, se o humano que queremos para o futuro for para se julgar livre como antes ou se, pelo menos, mesmo não se julgando livre, for para agir como se o fosse, então temos de nos bater por normas que estabeleçam limitações à previsão do comportamento humano e ao seu uso.

Tal como hoje não podemos disparar armas sobre os nossos vizinhos, no futuro não deveríamos poder activar algoritmos que nos digam se os nossos vizinhos vão disparar armas. Mas se admitimos hoje que forças de segurança pública usem armas, talvez possamos admitir no futuro que em algumas circunstâncias façam uso de algoritmos que previnam o disparo de armas. Imaginarmo-nos numa realidade como a do “Minority Report” (o filme de Spielberg que remonta a uma novela de Philiph K. Dick) pode ser perturbador, mas mais assustador e perigoso seria não a encarar e discutir.

Igualdade

No futuro, também vamos ter de nos bater pela igualdade como até agora nunca esteve ao nosso alcance recusar aos nossos iguais. Na verdade, se nada for feito em sentido contrário, deixará de fazer sentido esta expressão tão forte, “os nossos iguais”. Ou, pelo contrário, passará, como nunca no passado, a fazer sentido.

A igualdade foi sempre uma noção normativa, mas era-o neutralizando a desigualdade na diferença que trazíamos, como que por defeito. Fortes ou fracos, inteligentes ou nem tanto, mais ou menos belos, herdeiros ou filhos de dívidas, apesar de tudo isso, uma igualdade de oportunidades básicas era devida a todos. Um pouco como todos nascermos nus e todos termos a morte à espera. Doravante, algo muda drasticamente: a desigualdade é incorporada, sempre presente, como que por defeito, em diferenças apenas aparentemente naturais, a neutralizar qualquer expectativa de igualdade.

Vamos a exemplos drásticos? Não é uns sermos mais pobres e outros mais ricos, uns poderem viver do tempo de vida forçado a trabalhar dos outros e outros verem o seu tempo livre comprimido pela pressão a ser mais produtivo, mas levarmos a desigualdade para debaixo da nossa pele. São as técnicas de procriação que não ajudam a nascer mas a incorporar nos genes a desigualdade. São as técnicas que quebram com o valor igualitário do nascimento.

Com os avanços da Inteligência Artificial e da bionanotecnologia, nascer torna-se, no limite, uma perturbação a suprimir, tal como morrer. O que é preciso é garantir a continuidade da desigualdade acumulada, incorporando-a. Do outro lado da moeda, a continuidade sente-se como opressão social. Por aqui, deixaremos de ser biologicamente os mesmos para biologizar a desigualdade. Seremos subespécies económicas diferentes, luta de classes biológicas, castas genéticas. Não nasceremos nus com a morte à espera, nasceremos já propriedade e valor e não seremos mais do que um depósito da sua conservação ou da sua desolação.

Se o transhumano vai ser este projecto de incorporação de desigualdade, ou se, pelo contrário, vai ser um projecto de incorporação igualitária de melhoramentos ou aperfeiçoamentos de capacidades (“Human enhancement”) é o que não podemos deixar passar ao lado de uma politização. Disso depende continuarmos a reconhecermo-nos uns aos outros como “nossos iguais”. A igualdade, como a liberdade, não serão mais premissas para a política, mas o seu horizonte, de vida ou de morte.

Fraternidade

Liberdade, igualdade e fraternidade só persistirão valores para o futuro sobre uma base muito mais precária, ou mesmo sobre base nenhuma, apenas dependentes da capacidade de os firmar como vontade política em torno de uma ideia de humano, de que somos sujeitos de escolha e por que seremos colectivamente responsáveis. Simplesmente, mesmo essa capacidade de ser sujeito de escolha, autodeterminado e com suficiente autonomia tende a desmoronar-se na mesma proporção em que a existência deixe de ser possível fora de uma imersão em redes.

Estarmos sempre em rede é na verdade o que se espera de nós como a conectividade de computadores. E darmos periodicamente sinal de existência na rede é na verdade cumprirmos a nossa função num tecido conectivo vivo. O sujeito desta rede não somos nós, sejamos nós cada um individualmente, ou conjuntamente uma consciência colectiva. Enquanto estar offline for uma possibilidade ainda nos retomamos como sujeitos, mas, com a internet das coisas dentro das casas e a sair para as ruas, essa parece cada vez mais uma impossibilidade a prazo.

Podemos lutar politicamente por fazer do offline um direito, mesmo uma garantia fundamental da personalidade, mas, com franqueza, não se pode contornar a pergunta: até que ponto direitos e garantias vão deter a ratoeira da adesão voluntária, cheia de estímulos e brindes que só muito difusamente se fazem pagar? O retorno para cada célula, para o seu cálculo de prazer e desprazer, é evidente, mas não aquilo de que abre mão em termos de autonomia individual. A não ser que saibamos sair desse cálculo.

O logro deste vitalismo do prazer e do desprazer, do sinal e do estímulo,  tudo mais ou menos quantificável, analisável, modelável, está em deixarmos de articular como sujeitos autónomos uma comunidade, uma vontade comum, um contrato social, em que se garantisse a individualidade de cada um, mas antes desarticularmos a nossa autonomia em um tecido conectivo de que participamos como células. E quando formos apenas células individuais conectadas, a pergunta a fazer é: de que ser somos células?

As abordagens da comunidade política precisamente como organismo vivo, como a persistência da apresentação de entidades do estado como organismos, entidades da soberania como órgãos, e unidades básicas de organização de partidos como células, não ajudam a evitar esta confusão. O que era uma metáfora tenderá cada vez mais a apresentar-se como uma possibilidade bastante literal e, talvez, inescapável. Resta imaginar como não soçobrar em irrelevância ou mesmo defeito a capacidade de autodeterminação e a autonomia individual quando formos células em rede.

No futuro vamos ter de nos bater pela fraternidade como até agora nunca esteve ao nosso alcance recusar aos nossos irmãos e irmãs. A fraternidade supõe no reconhecimento do outro como igual motivo suficiente, e na liberdade própria capacidade suficiente, para agir com, por e para ele, em vista de uma comunidade. Na ausência daquelas, a fraternidade não significa nada. Mas talvez seja em não se perder esta, numa resistência de contra-rede fraterna, que se guardem aquelas.  E se guarde o humano, cada vez menos realidade fixa e mais ideia, a debater e a imaginar por uma comunidade de todos, sobretudo isso, um sujeito que se pense sempre como todos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.