“Hoje Portugal fica mais Portugal.” As palavras do ministro António Leitão Amaro ecoaram na Assembleia da República, recebidas com aplausos que pareciam celebrar mais do que uma lei, celebravam uma filosofia de pertença, restrita e seletiva. No entanto, por trás desta celebração, esconde-se uma premissa preocupante: a essência de uma nação pode ser medida pela ascendência e pertencer é um privilégio, não um compromisso.
Ao ouvir o debate sobre a Lei da Nacionalidade, tornou-se claro para mim que esta lei tem menos a ver com nacionalidade e mais com a definição de um “dentro” e um “fora”. Os deputados do Chega falaram triunfalmente de linhagens, de excluir aqueles “na AIMA” (um ataque mal disfarçado aos migrantes e às instituições que os servem), enquanto o CDS-PP condenou a suposta facilidade de adquirir a nacionalidade. Entretanto, a história recente de Portugal lembra-nos que a nacionalidade já esteve literalmente à venda através do regime dos vistos Gold. Esta memória seletiva expõe uma contradição mais profunda: a cidadania é, simultaneamente, um instrumento jurídico e uma reivindicação moral, mas aqui é tratada como uma mercadoria a ser racionada, controlada e celebrada apenas quando herdada.
A retórica da lei procura converter a ascendência em autoridade, a identidade em hierarquia. É uma linguagem de exclusão disfarçada de orgulho. No entanto, os números contam uma história diferente. Apenas uma em cada trinta pessoas em todo o mundo vive fora do seu país natal e, na Europa, os migrantes internacionais representam aproximadamente 12% da população. Em Portugal, menos de 10% dos residentes são estrangeiros. A migração não é uma crise, mas uma constante da história humana. Enquadrá-la como uma ameaça é distorcer a realidade, permitir que o medo defina a lei.
Como argumenta o reputado sociólogo Hein de Haas, a migração não é uma anomalia, mas um processo normal e inevitável, uma característica estrutural da mudança social e económica. Tal como o comércio ou a urbanização, faz parte da evolução das sociedades. A sua investigação desconstrói o mito persistente de que vivemos numa era de migração sem precedentes. Na verdade, a percentagem de migrantes internacionais tem-se mantido estável em cerca de 3% da população mundial há mais de meio século. O que mudou foi a geografia: a Europa, outrora um continente de emigração, tornou-se um continente de imigração. Contudo, a retórica política continua a tratar esta evolução normal como uma ameaça existencial.
A ansiedade da Europa em relação à migração, no entanto, não é uniforme, é seletiva. Em todo o continente, o acesso à cidadania depende cada vez mais da ascendência, da residência ou de obstáculos burocráticos. A Itália exige que os filhos de migrantes atinjam a maioridade antes de poderem pedir a nacionalidade. A Áustria mantém alguns dos procedimentos de naturalização mais restritivos da União Europeia. A França, há muito considerada um país de assimilação, ainda oscila entre o ius soli e o ius sanguinis. Estas políticas são apresentadas como pragmáticas, mas, muitas vezes, mascaram uma contradição mais profunda: a Europa procura o controlo, mas depende da mobilidade; securitiza as fronteiras, mas beneficia da circulação humana.
As políticas migratórias nos países de rendimento elevado não são uniformemente restritivas, são seletivamente abertas. Enquanto as barreiras se intensificaram para os migrantes mais pobres, as políticas para os qualificados, os ricos e os estudantes foram flexibilizadas. O controlo da migração tem, portanto, menos a ver com números e mais com quem é autorizado a entrar. Trata-se de um sistema de seleção económica e racializada disfarçado de gestão de fronteiras. A ansiedade da Europa não é sobre a migração em si, mas sobre quais os migrantes que está disposta a aceitar.
A nova lei portuguesa é uma manifestação local deste paradoxo europeu mais amplo, i.e., a instrumentalização política da pertença para satisfazer as ansiedades nacionalistas. Privilegia a exclusão, o controlo e a identidade em detrimento da dignidade humana, reduzindo a cidadania à hereditariedade e ignorando as dimensões cívicas e morais da pertença.
Conheço estas dinâmicas não apenas como observador, mas também através da vivência pessoal. Sou um migrante, extremamente afortunado e privilegiado, nascido em Itália de pais iranianos que se reinstalaram na Europa na década de 1960. Circulei, estudei e trabalhei livremente em muitos países, tendo agora fixado a minha residência em Portugal. A minha jornada, protegida e facilitada pela União Europeia, contrasta fortemente com a daqueles que, por exemplo, arriscam tudo no Mediterrâneo Central, muitas vezes para encontrar a tragédia. Não pude deixar de notar, através da minha própria investigação, que a securitização europeia, incluindo a externalização das fronteiras e a criminalização do resgate humanitário, prioriza a dissuasão em detrimento da vida, aumentando o número de mortes e transferindo a responsabilidade para Estados com um compromisso limitado com os direitos humanos.
Globalmente, a migração não é nem excecional nem ameaçadora. Em 2024, havia 281 milhões de migrantes internacionais, apenas 3,6% da população global. É importante ressaltar que a maior parte dos movimentos ocorre dentro dos próprios países, e não através das fronteiras. Os padrões de migração são moldados pela desigualdade, pelos conflitos e, agora, também pelo clima, e não por capricho pessoal. O Índice Henley Passport, uma métrica estéril mas reveladora, mostra que os cidadãos de nações ricas podem entrar em mais de 80% dos países sem visto, enquanto os cidadãos de estados mais pobres enfrentam uma imobilidade quase total. A liberdade de movimento, por outras palavras, tornou-se um privilégio de nascimento.
Políticas que negam caminhos seguros, externalizam a responsabilidade ou criminalizam a ajuda não travam a migração, tornam-na mais perigosa. Devemos ter cuidado com a ilusão de que fronteiras mais rígidas reduzem a migração. Estudos mostram que as restrições muitas vezes produzem o efeito oposto, gerando “efeitos de substituição” que desviam rotas e prolongam estadias. A migração adapta-se, não desaparece. A securitização europeia, desde controlos externalizados para a Líbia até à criminalização de ONG e à burocratização do asilo, não é neutra. Tem consequências para a vida e a morte: projeta controlo sem alcançá-lo, enquanto os custos humanos se multiplicam.
Mesmo em Portugal, onde os fluxos migratórios são relativamente modestos, as contribuições dos migrantes são tangíveis e indispensáveis. O último relatório da Organização Internacional para as Migrações refere que mais de 180.000 residentes são originários de Angola, 154.000 do Brasil, 104.000 de França, 90.000 de Moçambique e 68.000 de Cabo Verde. São engenheiros, cuidadores, trabalhadores da construção civil, agricultores, estudantes e famílias cujo trabalho diário tece o tecido social deste país. Muitos falam a língua, pagam impostos e criam os filhos aqui, mas continuam a ser tratados como membros condicionais da sociedade.
Na realidade, a migração é impulsionada por exigências estruturais de mão de obra. Em todas as economias avançadas, os migrantes sustentam setores chave como o setor dos cuidados, construção, agricultura e ciência, muitas vezes preenchendo lacunas que as populações nativas não podem ou não querem preencher. A narrativa familiar de que os migrantes «roubam os nossos empregos» desmorona-se sob um escrutínio empírico; dados da OCDE mostram consistentemente que o impacto económico da migração nos países de acolhimento é, na verdade, positivo. O que persiste, portanto, não é um problema económico, mas um mito político, que instrumentaliza a contribuição humana para fins ideológicos.
Filosoficamente falando, a cidadania não é uma questão de sangue, mas de compromisso moral e social. Incorpora reconhecimento, obrigação e participação, um contrato que vincula os cidadãos a um projeto político comum. Como argumentaram diversos pensadores, de J-J. Rousseau a T. H. Marshall, a legitimidade do Estado não se baseia na ascendência, mas no pacto social que une aqueles que vivem sob as suas leis. Reduzir a cidadania à hereditariedade é transformar um vínculo cívico numa hierarquia de pertença, legitimando a discriminação sob o pretexto da tradição.
Os argumentos populistas do Chega ou do CDS-PP, que retratam os migrantes como caos e os nativos como ordem, soam a racismo. Confundem a preservação de privilégios com a proteção da identidade. De Haas recorda-nos que a migração é, em última análise, uma questão de liberdade, a capacidade de escolher a mobilidade. No entanto, vivemos numa era de “imobilidade involuntária”, em que as fronteiras confinam mais do que permitem circular. A cidadania torna-se assim um mecanismo de controlo e não de solidariedade, definindo quem pode circular e quem deve ficar.
Os defensores da lei afirmam que ela restaura a ordem, reafirma a identidade nacional e defende a história. No entanto, a história nunca é neutra. O passado de Portugal é marcado por partidas, chegadas e encontros com a diferença. A ideia de que a nação pode ser purificada ou estabilizada apenas pela ascendência é a-histórica; deturpa tanto a experiência portuguesa como as responsabilidades éticas de um Estado moderno. A cidadania é um convite à pertença, não um prémio por privilégios herdados.
A Europa enfrenta um paradoxo demográfico e moral. Os Estados dependem dos migrantes para suportar as economias e os sistemas sociais, mas criam políticas que restringem o acesso, reduzem os direitos e deslegitimam a contribuição vivida. Existe um contraste gritante, que reflete um estado de desigualdade humana, em que alguns cidadãos “estrangeiros ricos” são bem-vindos, enquanto outros não. Em Portugal e além-fronteiras, as narrativas políticas enquadram os migrantes como ameaças à identidade, quando na realidade são parte integrante do presente e do futuro da nação. Esta tensão – entre necessidade e ideologia – é precisamente o que torna políticas como a nova Lei da Nacionalidade tão consequentes e controversas.
No final, percebi que este debate vai além de números ou regras. Trata-se do tipo de sociedade que Portugal e a Europa escolhem ser. A nação é definida pela exclusão, por uma hierarquia genealógica, pelo medo da diferença? Ou é definida pelo acolhimento daqueles que já vivem, trabalham e investem no seu futuro? A cidadania, no fim de contas, não é herdada; é conquistada através do reconhecimento, da responsabilidade e da participação. Assim sendo, a verdadeira identidade de Portugal já está escrita, nas vidas e contribuições de todos aqueles que consideram este país a sua casa.
Quando os aplausos cessaram na Assembleia da República, o que restou foi o silêncio, um silêncio pesado pela contradição entre orgulho e princípio. Se ser português é, como disse o primeiro-ministro, “uma honra e uma responsabilidade”, essa responsabilidade deve estender-se para além da ascendência. Deve abarcar aqueles que já trabalham e vivem em Portugal, contribuindo para o tecido social, mas que continuam vulneráveis à exclusão. A cidadania é uma promessa, não um privilégio; uma garantia de dignidade, não um mecanismo de controlo. É nessa promessa, e não na restrição, que Portugal pode verdadeiramente “ficar mais Portugal”?
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