Há décadas que velhos mitos sobre a história de Lisboa e seu contributo para o brand da cidade foram desfeitos por historiadores de várias nacionalidades – franceses, britânicos, americanos, portugueses – mas persistem na escola, nos jornais, nos guias turísticos.

Desde outubro de 1147 que a conquista de Lisboa é qualificada como aos “mouros”, palavra que designa genericamente todos os habitantes da cidade, qualquer que fosse a sua origem.

Logo após a conquista, a matança e espoliação dos lisboetas por parte do contingente multinacional europeu que conquistou a cidade no contexto da Segunda Cruzada, e entregou a cidade ao rei Afonso Henriques que assistiu às hostilidades no seu acampamento solitário na Senhora do Monte, foi anunciada como uma vitória da cristandade.

Foram cometidos muitos crimes contra os lisboetas pelos cruzados quando entraram de rompante pela cidade vencida. O saque e os assassínios tinham sido antecipados pelo rei português e por alguns chefes cruzados que tentaram, sem sucesso, persuadir o contingente de ingleses, alemães, flamengos, italianos a poupar a vida dos lisboetas, de cordo com os preceitos da noção medieval de “guerra justa”.

O problema é que aos cruzados tinha sido prometido o saque da cidade como recompensa pela paragem forçada em Lisboa na sua longa e penosa viagem marítima até à Palestina. Além disso, a conquista da cidade fazia parte da cruzada cristã contra os infiéis e aos mártires caídos na conquista de Lisboa estava garantida a absolvição dos pecados e lugar no Paraíso. Fora-lhes dito que Lisboa era tão infiel quanto eram os muçulmanos que ameaçavam Jerusalém e que tinham já reconquistado Edessa.

Lisboa não era moura. Sabe-se pelo testemunho do cruzado beneditino normando R (talvez Raoul) que Lisboa era cristã. R participou e descreveu a conquista de Lisboa com grande pormenor na carta dirigida ao seu confrade Osbern, outro beneditino residente em Suffolk, Inglaterra. Osbern continua a ser confundido como sendo o autor da célebre carta guardada em Oxford e não o seu destinatário, como se supôs durante muito tempo, pelo que há uma rua com o seu nome perto de Xabregas – um exemplo simples de história deturpada pela toponímia.

Ao tempo da conquista, Lisboa era cristã mas professava a heresia conhecida como Arianismo, herdada dos vândalos e visigodos, e por isso banida pela igreja oficial de Roma, à força da espada, desde o concílio de Niceia.

O Arianismo perdurou em Lisboa, uma cidade-estado marítima relativamente isolada por via terrestre mesmo na era romana, vários séculos depois dos principais clãs germânicos em França, Alemanha e Espanha se terem convertido ao catolicismo. Os cruzados que conquistaram Lisboa espantaram-se ao descobrir que os habitantes pediam socorro à Virgem Maria, um estranho comportamento para quem era considerado infiel.

Lisboa estava longe das grandes rotas invasoras, germânicos vindos do norte, magrebinos e árabes vindos do sul. A cidade era considerada um paraíso, de tal modo branda era a vida que as éguas eram fecundadas pelo vento, o ouro brotava da areia das praias, o mar era repleto de peixe e baleias, caçavam-se ursos nas redondezas, havia pomares e hortas nos arredores e pela encosta do castelo acima.

Alguns historiadores explicam que a resistência da cidade às várias tentativas de conquista pelos leoneses, e depois por Afonso Henriques, a primeira das quais fracassada, se deve à tenebrosa ideia de que teriam de pagar impostos ao rei conquistador. Tinham razão. Os impostos não tardaram e a casa real tornou-se o maior senhorio de Lisboa.

Os que foram expulsos para a Mouraria eram provavelmente os habitantes da cidade que não fugiram para longe e cujas casas foram apropriadas pelos conquistadores. Segundo o historiador António Borges Coelho, a conquista de Lisboa foi mais terrível para a cidade que o terramoto de 1755.

Lisboa era esotérica, como diz o historiador Cláudio Torres, maioritariamente cristã, algo moura e quase nada árabe – estas eram minorias que se concentravam em Beja, Mértola ou Silves. De facto, a esmagadora maioria das forças que a partir de 711 invadiram a Península eram berberes argelinos, marroquinos e mauritanos islamizados ou cristianizados, e ainda cristãos do Magrebe súbditos do antigo Império Romano.

Os berberes estavam sempre revoltados porque sempre desprezados pelas elites árabes (ainda hoje). Alguns desses conquistadores terão pacificamente tomado conta de Lisboa, estabelecendo uma guarnição no castelo. Na Lisboa romana e cristã herética passou a ser conveniente adotar nomes e apelidos árabes.

Nunca foi encontrado qualquer vestígio de uma suposta grande mesquita em Lisboa, como refere com imprecisão R na sua carta, no local onde hoje se ergue a Sé mas em cujas paredes foram usadas pedras com inscrições romanas. Havia, isso sim, igrejas cristãs, que perduram.

Os guias turísticos continuam a contar a falsa história da Lisboa “moura”, como de resto muitos continuam a falar do Portugal “árabe”. Os vestígios da cultura, arquitetura e genética árabe são muito escassos em Portugal. Os grandes centros políticos e culturais estavam no Al Andaluz espanhol. Alguns conhecidos poetas em língua árabe que nasceram no Algarve e Alentejo emigraram para os grandes centros culturais árabes de Sevilha, Granada, Córdova ou Saragoça.

Depois do período em que Lisboa foi a cosmopolita capital do primeiro império global, uma época definidora que terminou com Alcácer-Quibir, o declínio de Portugal foi progressivo, entrecortado com sobressaltos dourados, até ao momento em que foi capital de um país cada vez mais ensimesmado, com um governo que proclamava com arrogância “orgulhosamente sós”. Foi outra época definidora.

Não bastou a adesão à CEE em 1986 para iniciar o fim do isolamento de Portugal. As muralhas mentais só voltaram verdadeiramente a ser de novo derrubadas nos últimos 15 anos, com a introdução de Lisboa e Porto nas rotas das linhas aéreas low cost. Uma nova invasão e uma nova dimensão teve início: pessoas mesmo, turistas, call-centres internacionais, estudantes. Lisboa é de novo uma cidade cosmopolita, mas o novo centro de produção europeu da Netflix foi para Madrid. Faltam mais empresas de dimensão internacional.