A propósito de uma “transferência de competências” para as autarquias, decretada pelo Governo e não muito apreciada por algumas das beneficiárias da coisa, voltou à baila nos últimos tempos o assunto da “descentralização”.

Não há partido que, mesmo quando critica a forma que os outros lhe querem dar, não teça as maiores loas ao princípio. Do PCP ao CDS, a “descentralização”, pelo menos enquanto vaga intenção, é sempre um objectivo a perseguir. Julgam, com essas rezas, convencer os portugueses do amor que nutrem pela “política de proximidade” (já os portugueses, da política, só querem distância), mas mostram apenas o seu desconhecimento do país onde vivem.

Antes de haver portugueses já havia Portugal. Não a comunidade política a que se daria esse nome, claro, mas o espaço geográfico em que ela surgiria, e que era tudo menos um Éden. Os solos pobres e improdutivos, a pequenez do território e a posição periférica na Europa foram conspirando, ao longo dos séculos, para que os coitados que cá foram vivendo nunca tivessem muitas oportunidades de prosperar de forma independente do centro político.

Quando Portugal efectivamente nasceu, por exemplo, a principal fonte de enriquecimento era a oferecida pelo combate militar contra os “mouros”, que por centenas de anos deu a milhares de jovens dessa Europa fora uma desculpa sagrada para se entregarem à pilhagem, ao saque e à conquista de terras. Daqui decorria necessariamente que o poder político, o condutor dessa “Reconquista”, concentrasse em si a autoridade, e que os “senhores” feitos pela guerra tivessem de lhe estar permanentemente submissos, nunca formando verdadeiros “feudos” resistentes ao poder da Coroa.

A partir do século XV, a expansão militar em África, os “Descobrimentos” marítimos e a exploração do “Império” não alteraram esta realidade: estas empresas eram conduzidas pelos reis e seus familiares, e a fortuna (em ambos os sentidos da palavra) dos que nelas se envolviam dependia do favor real, que decidia quem ocupava que cargo na estrutura imperial, quem mantinha que parte da riqueza extraída no Brasil, em África ou na Índia, e quanto dela caberia à Coroa.

Aquém-mar, a realidade era a mesma: os “grandes” (e a Igreja) que detinham terras e títulos eram no fundo uma espécie de “boys” partidários do tempo, cujas posses e “poder” eram apenas os que o rei lhes autorizava a ter, sem qualquer força ou independência próprias.

Se o “Liberalismo” podia ter mudado alguma coisa, só à superfície o fez. Mesmo os “caciques” e “influentes” da fama só o eram na medida em que tinham sido autorizados pelo governo do dia, e não por serem genuínos detentores de uma autoridade própria reconhecida na “terra”.

Se já eram fracos antes de 1834, os “aristocratas” (e a Igreja) portugueses ficaram-no ainda mais quando as reformas de Mouzinho lhes retiraram grande parte das fontes de rendimento próprias, e os “liberais” que se transformaram em “nobres” com a “venda” (na realidade, um roubo politicamente orquestrado) dos “bens nacionais”, fizeram-no através do poder político que detinham. Por alguma razão o outro senhor dizia que o país estava todo entre a Arcada e São Bento.

Na “República”, é certo, havia queixas de que o regime não chegara à “província”. Mas o lamento reflectia apenas a hostilidade generalizada da população portuguesa aos “doutores” do PRP e aos bandos de arruaceiros e terroristas às suas ordens, não a uma verdadeira independência do “país real” face ao poder do governo, que só seria efectivamente destruído quando, já a partir dele, Salazar erigiu o “Estado Novo”. Como dizia o refrão, Salazar “mandava” e não queria que houvesse qualquer poder que competisse com o seu. E tal como acontecera com os antecessores, a sua criação cairia por implosão.

Para nosso azar, a democracia não só herdou o Estado burocrático e autoritário do aspirante a Richelião de Santa Comba, como em certa medida o expandiu, e as autarquias, longe de serem um instrumento de “aproximação” do poder “às pessoas”, são essencialmente um mecanismo através do qual os partidos garantem aos seus aparelhos o número suficiente de empregos para os sustentarem, e assim se sustentarem a si próprios.

Nos países realmente descentralizados, essa descentralização existe porque esses países não são centralizados por defeito: têm vários polos de poder (comercial, económico, “étnico”) que fazem com que o poder político esteja também ele disseminado, e que a sua arquitectura institucional reflicta essa mesma disseminação. Já Portugal “é Lisboa e o resto é paisagem” porque as condicionantes naturais (a sua geografia) e a forma como quem cá foi vivendo foi lidando com elas e com os resultados das opções de quem os precedeu (a sua história) o centralizaram.

Por muito negativa que essa centralização seja (para os lisboetas e para todos os outros) não será um conjunto de decretos governamentais a eliminá-la. A descentralização que se prepara, e as “descentralizações” de que por aí se falam, não descentralizarão nada, nem o pretendem fazer. O seu único propósito e resultado é dar aos vários poderes locais – suportes dos (e suportados pelos) partidos do poder nacional – alguns meios adicionais de compra de votos, locais e nacionais, nas respectivas terras. O resto é apenas vã conversa para preencher aquilo a que por cá erroneamente se chama de “debate político”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.