Percorrer as artérias de Lisboa, descaindo até à rua Nova da Trindade, sem encontrar a loja da Cotovia dá-nos uma noção de transformação da cidade. Lisboa continua a atrair milhares de turistas e gente de várias geografias que dispõem dos encantos desta cidade. Mas posso confessar que me senti invadido por um profundo vazio ao tomar consciência do silêncio motivado pela ausência do canto da Cotovia.

A noite descia enquanto o sol e a lua bailavam desencontrados. A escuridão procurava apressadamente vestir de negro a cidade de Lisboa. Tinha, finalmente, regressado a uma cidade que tão bem me conhecia. Esperava, assim, ser invadido pelo canto da Cotovia ao entrar no seu espaço, uma sala pequena com vários livros expostos, com dois pisos. Um espaço que conservava tanta riqueza pelo espólio literário construído, sempre com a noção de rigor e de especialização temática.

Talvez sem saber, a Cotovia permitia que muitos jovens tivessem acesso a obras científicas de forma mais democrática. Aconteceu comigo. Muitas vezes, consegui encontrar os seus livros a preços mais modestos aos meus bolsos, fruto da revenda em outras lojas. Em particular, na já encerrada histórica Livraria Aillaud & Lellos, na rua do Carmo, em Lisboa.

Mas era mesmo a loja da Cotovia, na Trindade, que tinha o maior encanto. Entrava na sala daquela editora, colocava os olhos em cada obra, vagarosamente, e naquele instante era invadido por um súbito desejo de ler cada autor e de reduzir impulsivamente a minha eterna ignorância. Ficar sem o canto da Cotovia representa, pelo menos para mim, um empobrecimento da cidade de Lisboa.

Este meu relato pode ser associado à expressão de um sentimento nostálgico relativamente a Lisboa, como uma cidade presa no esteio do tempo, retirando-lhe, através do meu egoísmo, o direito à sua própria dinâmica e reinvenção. Lisboa deve procurar a sua renovação constante e introduzir novas dinâmicas, por meio de novos sopros e novos rumos, provocando novos gostos culturais e, actualmente, com outro tipo de consumo cultural.

Mas a Cotovia casava na perfeição com esta Lisboa dinâmica e aberta ao mundo, através de um espólio com vozes de várias latitudes e geografias contemporâneas, modernas e clássicas.

Mas não com uma Lisboa comercial, facilmente consumida pelos olhos das pessoas apressadas que passam, na medida em que a editora se norteava por rigorosos critérios de publicação e concentrava nomes que marcaram as culturas dos respectivos países, sem entrar na vã necessidade de apostar em figuras notáveis ou mais comerciáveis.

Nem sequer caiu na velha tentação de colocar rótulos comerciais aos autores que publicava. Não os inscrevia dentro de uma geografia comercial ou atractiva para o mercado literário, o que afectaria, sobretudo, os autores africanos e sul-americanos cujas obras estão invariavelmente remetidas à sua origem geográfica e não a um estilo ou temática.

Havia liberdade criativa dentro da Cotovia, que em muito beneficiou todo o processo criativo, e sobretudo intelectual, de Ruy Duarte de Carvalho, um autor que possuía uma obra inclassificável devido ao cruzamento de abordagens e técnicas de escrita. Por este motivo, raros são os livros de Ruy Duarte de Carvalho que terão sido objecto de uma recensão crítica nos jornais portugueses ou angolanos.

Lisboa sem a minha Cotovia apresenta-se despida. Já não se ouve o canto que trouxe poesia, ciência e literatura à cidade. Morreu o espaço que me ensinou que a cidade pode ser também um lugar de provincianismo, sem deixar de estar aberta a um novo mundo. Sinto nostalgia desta Lisboa agora, mas espero vir a ter saudades do futuro de Lisboa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.