Num radioso dia de junho, Abel Salazar descreve assim o sol matinal que ilumina o parisiense Bois de Boulogne: “A sua luz radiosa dissolve-se na bruma azulada que cobre em veladuras o arvoredo do bosque e que aumenta de densidade com o alongar das distâncias. (…) O céu, pérola como sempre, com ‘patines’ de velha porcelana, é antes uma atmosfera densa que desce sobre os horizontes e neles se funde, do que uma abóbada perdida nas alturas.”
Neste excerto, nota-se bem a vertente de pintor deste médico, professor catedrático da Universidade do Porto, ensaísta, historiador e crítico de arte.
Afastado da Universidade e do Instituto por motivos políticos, dado que era um franco opositor das ideias do seu homónimo, Abel Salazar pôde assim dedicar-se mais à atividade artística.
Como refere Joana Baião no site do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, onde se encontra uma das suas obras, Abel Salazar era um “autodidacta, a sua formação estética gera-se independentemente de escolas ou correntes artísticas, embora seja marcada por um gosto de herança naturalista, a que alia uma forte componente de análise da realidade que o rodeia. As suas obras retratam trabalhadores em contexto urbano e rural, em composições dramáticas marcadas pelo intenso uso da mancha, e claramente imbuídas de um sentido de crítica social.”
“Paris em 1934” é o relato de uma estadia de seis meses do médico na cidade-luz. Originalmente publicado em 1938, foi agora reeditado pela UPorto Press e pela Casa-Museu Abel Salazar, e inclui reproduções de fotografias do autor, em Paris, e de algumas das obras produzidas no âmbito desta viagem.
Se o sentimento geral dos portugueses que visitaram Paris nos séculos anteriores era extremamente positivo, havendo uma enorme proximidade – aliás, mais uma feliz apropriação – de ideias e uma certa afiliação cultural, o mesmo não aconteceu com Abel Salazar, a quem a cidade surge como um misto de cultura e barbárie, de luz e sombras, preenchida com edifícios pesados, de arquitectura quase alemã, habitada por uma burguesia embrutecida, tão insensível à Injustiça como ao Belo – a crónica “A Parisiense e o Cãozinho”, um dos maiores estereótipos relativos à cidade (ainda que, porventura, fácil de confirmar), é um dos melhores exemplos do apurado espírito crítico do autor.
Crónica de costumes, retrato da cidade e reflexão sobre a sua própria criação artística, “Paris em 1934” diz-nos tanto sobre a cidade como sobre o homem e o artista.
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