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Laginha de Sousa: “A União do Mercado de Capitais não é um substituto para o que é necessário fazer em muitas áreas”

Numa entrevista a propósito da rubrica semanal “Decisor da Semana”, o presidente da CMVM diz que “a arquitetura do mercado de capitais europeu e da sua supervisão, contemplada na União do Mercado de Capitais (CMU), sendo uma peça importante, não é um substituto para o que é necessário fazer em muitas áreas que não têm uma relação direta ou forte com essa mesma arquitetura”.
Cristina Bernardo
12 Fevereiro 2025, 07h00

A Comissão de Mercado de Valores Mobiliários apresentou na semana passada o Plano Estratégico 2025-2028 e esse foi o pretexto para falar com Luís Laginha de Sousa, presidente do Conselho de Administração da CMVM desde dezembro de 2022. Antes, foi administrador do Banco de Portugal e é também ex-presidente da Euronext Lisbon. É licenciado em Economia pela Universidade Católica Portuguesa (1988), completou o MBA na mesma Universidade (1995), tendo igualmente frequentado o Corporate Finance Programme da London Business School (2004). Nasceu em Setúbal, é casado e tem dois filhos.

O super discreto presidente da entidade reguladora dos mercados de capitais tem a árdua tarefa de criar condições para que as empresas se financiem na bolsa e para que os particulares optem pelo investimento em títulos como forma de poupança. Mas, como se pode ver pela atual dimensão do PSI, atrair novas empresas para o mercado de capitais português mais parece uma “missão impossível”, ainda que até a CMVM já tenha lançado uma “sandbox” para as empresas que querem viver a experiência de uma cotada. A sandbox Market4Growth é uma iniciativa que permite às empresas simular o acesso ao mercado de capitais.

Mas a CMVM não desiste de dinamizar o mercado e aprofundar o Via Mercado, enquanto plataforma agregadora de iniciativas de desenvolvimento do mercado de capitais, continua nas orientações estratégicas da CMVM.

O Jornal Económico falou com Luís Laginha de Sousa a propósito da rubrica semanal “o Decisor da Semana”. Publicamos na íntegra a entrevista feita para essa finalidade.

O PSI tem 15 empresas. Atrair novas empresas para o mercado de capitais português é uma “missão impossível”?

Ainda que possa parecer uma missão impossível, se analisarmos quer a história do mercado de capitais em Portugal, quer os fatores que estão na origem dos níveis de desenvolvimento de mercados de capitais de países com os quais nos podemos comparar, podemos facilmente constatar que “impossível” não é de forma alguma a palavra aplicável.

Essa análise demonstra, para além de qualquer dúvida razoável, que o desenvolvimento do mercado depende, no essencial, de opções e decisões que influenciam o comportamento dos agentes económicos. Demonstra ainda que essas decisões não estão condicionadas por fatores exógenos (como, por exemplo, localização geográfica ou dimensão territorial), sendo dependentes apenas da vontade de adotar as medidas que contribuem, direta e indiretamente, para esse desenvolvimento.

Essas medidas tipicamente envolvem endereçar três componentes essenciais: um “stock” de poupança de longo prazo disponível, invariavelmente associada ao sistema de poupança para a reforma; um sistema fiscal que não penalize e que, idealmente, estimule quer a canalização de poupanças, quer o financiamento das empresas através do mercado; e um enquadramento que favoreça o desenvolvimento das empresas, quer em termos de aumentar a sua escala, quer a intensidade de capital que utilizam nas suas atividades, de modo a que essas empresas sejam não só capazes de gerar mais e melhor emprego, mas também sejam rentáveis e, dessa forma, atrativas para os investidores.

A CMVM não dispõe dos instrumentos nem do mandato para atuar nestas dimensões, no entanto, isso não nos impede de contribuir ativamente, até ao limite das nossas competências, para sensibilizar, mobilizar e apoiar todos os que podem intervir nas mesmas. E é justamente isso que está contemplado num dos cinco objetivos do Plano Estratégico da CMVM para 2025 – 2028, ou seja, “mobilizar para um mercado de capitais mais desenvolvido”.

A intenção de fomentar o investimento e poupança de longo prazo através do mercado de capitais é um objetivo alcançável?

Acreditamos que, para além de possível, acima de tudo, é um objetivo necessário para enfrentar, pelo menos, dois desafios que são amplamente reconhecidos. Refiro-me, por um lado, à necessidade de evitar quebras de rendimento para aqueles que se irão reformando e deixando a vida ativa. Essas quebras de rendimento serão inevitáveis com a evolução das chamadas “taxas de substituição” (diferença entre o último salário e a primeira pensão de reforma), sem que isso seja feito à custa de aumento de impostos. Por outro lado, essa poupança de longo prazo é também essencial para suprir, se não todo, pelo menos parte daquele que é um déficit crónico de capital no nosso País e cuja necessidade é cada vez maior para suprir as necessidades de investimento que temos.

Ainda que a meta do “stock” de poupança de longo prazo possa estar longe de alcançar, o caminho para lá chegar não só existe, como pode e deve ser percorrido. Para além disso, as dinâmicas inerentes a estes processos podem também acelerá-los bastante, sobretudo tendo presente que vivemos num mundo em que o capital se movimenta facilmente à escala global, para os locais onde sente que pode ser melhor valorizado.

O objetivo da CMVM quando introduziu o voto plural no Código de Valores Mobiliários era permitir que certos acionistas (fundadores, promotores ou investidores-chave) pudessem recorrer ao mercado de capitais como via para o financiamento do seu projeto empresarial sem receio de perderem o controlo da sociedade. Mas, três anos depois da lei ter entrado em vigor, “a emissão de ações com voto plural ainda não se concretizou”. A verdade é que as empresas familiares, quando precisam de financiamento e não querem recorrer à banca, preferem recorrer a private equities? Será que a CMVM está a apostar no mercado público quando as empresas estão a olhar para os mercados privados dos fundos de capital de risco?

É frequente que se confunda e reduza o “mercado de capitais” àquela que é porventura a sua face mais visível, que é a componente transacionada em bolsa. No entanto, o conceito de mercado de capitais envolve uma realidade muito mais ampla, a qual, ainda que menos visível, não pode ser menorizada. Os fundos de investimento, independentemente de serem mobiliários, imobiliários ou de capital de risco, são instrumentos do mercado de capitais que estão ao dispor das empresas para se financiarem. Da mesma forma, as empresas podem optar pela emissão de obrigações. As soluções de financiamento disponíveis para as empresas são muito diversificadas e cabe a cada uma analisar qual a solução mais adequada em cada momento, dependendo normalmente dos objetivos e da estratégia definida pela empresa.

Para a CMVM, são claras as vantagens que existem no recurso ao mercado de capitais de uma forma que ocupe um espaço relevante, mas complementar ao modelo de financiamento via instituições bancárias.

Contribuir para esse caminho de complementaridade equilibrada e virtuosa, para a criação de valor e bem-estar na nossa economia, é uma prioridade da CMVM. Essa contribuição passa por dotar o ordenamento jurídico nacional e, em particular, o que se aplica ao mercado de capitais, das alternativas que permitam aos agentes económicos (nomeadamente empresas) optar pelas que entendam mais adequadas ao seu caso concreto. A possibilidade de voto plural na vertente acionista enquadra-se nesta lógica de alargamento de opções, mas, mais uma vez, cabe às empresas a decisão final sobre se querem aproveitar os mecanismos disponíveis.

Disse recentemente que dinamizar o investimento passa por “reforçar a confiança dos investidores”. Nesse sentido, a CMVM anunciou a disponibilização de uma ferramenta que permita aos investidores avaliar e comparar instrumentos financeiros disponíveis no mercado, com base em critérios como risco, retorno e custos associados, fomentando a transparência, a tomada de decisões mais informadas e a confiança no mercado, bem como no value for money dos produtos financeiros disponíveis. Esta é a pedra de toque do plano estratégico da CMVM?

Tenho referido várias vezes, e a convicção mantém-se, que não há uma solução que permita endereçar todos os desafios. No entanto, senão para todos, seguramente para a vasta maioria dos desafios, existem soluções. A “confiança” é um dos desafios, quer no sentido de ser protegida, quer no sentido do seu reforço, porque é um elemento essencial para suporte às decisões dos agentes económicos, sobretudo quando atuam no mercado de capitais. Por outro lado, a “confiança” é influenciada por fatores concretos que podem e devem ser trabalhados pelos diferentes intervenientes no mercado. Naturalmente que uma Autoridade de Supervisão tem um papel acrescido nesta matéria e o fomentar a transparência sobre os instrumentos transacionados em mercado é um elemento que tem uma ligação direta à confiança dos investidores. No entanto, a preservação e reforço da confiança não se esgota na transparência, sendo igualmente essencial uma supervisão eficaz, e percebida como tal, para além de outros fatores.

A CMVM pretende promover “continuamente um quadro regulatório simplificado, eficaz, que proporcione níveis adequados de proteção aos investidores e o desenvolvimento do mercado”. Ou seja, a gestão da CMVM parece estar condenada a estar entre a espada de simplificar a regulação para potenciar o desenvolvimento do mercado de capitais e a parede que é garantir uma regulação que proteja os investidores, nomeadamente os investidores particulares. Há um ponto de equilíbrio?

Existem muitas matérias em que o conceito de “alvo móvel” é aquele que melhor define a busca pelo tentar encontrar o equilíbrio certo entre as diferentes componentes que se pretendem conciliar. Esse conceito também se aplica na regulação, atendendo a que o privilegiar a “proteção” ou o “desenvolvimento” conduzem necessariamente a opções regulatórias distintas. Não obstante, é na identificação do ponto que pode maximizar o bem comum que deve estar o equilíbrio. Esse equilíbrio pode mudar ao longo do tempo, por variados fatores, conjunturais ou estruturais, devendo também, quer a regulação, quer a forma como a mesma é aplicada, poder ser ajustada e esse processo ser visto com naturalidade, mas também com o cuidado de não se traduzir em mudanças que, com o pretexto de serem benéficas, só o sejam marginalmente e não ao ponto de compensarem adequadamente os custos do ajustamento. Acresce ainda que a simplificação de um quadro regulatório não significa, necessariamente, uma redução da proteção dos investidores. Podem estar em causa, a título de exemplo, a eliminação de duplicações no cumprimento de deveres ou a eliminação de deveres que sejam desadequados a uma determinada tipologia de entidades. Podemos também falar de reduzir barreiras burocráticas – por via da intensificação e melhoria das infraestruturas tecnológicas – que facilitem a vida das entidades no cumprimento dos seus deveres.

Como é que vê o mercado dos instrumentos financeiros em 2028?

Infelizmente, não existem instrumentos que nos permitam vislumbrar o que será o futuro, nem compete ao supervisor do mercado fazer projeções sobre essas matérias. O que podemos, devemos e fazemos é afirmar como gostaríamos que pudesse ser a evolução do mercado de capitais em Portugal. Nesse âmbito, creio que o Plano Estratégico da CMVM traduz esse sentimento, utilizando um verbo muito adequado e aplicando-o a diferentes dimensões da evolução do mercado. A CMVM “aspira” a que o mercado de instrumentos financeiros tenha um maior número de intervenientes, o que significa mais entidades e mais investidores. Aspira também a que os investidores sejam mais confiantes e informados, que tenham mais opções para a aplicação das suas poupanças e que saibam avaliá-las, compará-las e tomar decisões conscientes. Aspira também a uma maior resiliência do mercado de capitais, o que incorpora também uma maior integração a nível europeu, com o aprofundamento, entre outros aspetos, das supervisões coordenadas entre os Estados-membros.

Os criptoativos podem “roubar” investidores ao mercado de capitais?

Uma carteira de investimentos equilibrada envolve diversas categorias de ativos, com diversos níveis de risco e diversas maturidades em função daquilo que são os objetivos de curto, médio e longo prazo do investidor. A inovação é desejável e as novas tecnologias abriram a porta à criação de novas soluções que trouxeram melhorias evidentes ao nosso bem-estar diário – como a possibilidade de cumprimento online de inúmeras obrigações legais, tratamento de burocracia e no relacionamento com diversas entidades – mas trouxeram também riscos acrescidos, de que são exemplo as burlas e fraudes. O nível de proteção a que está sujeito alguém que investe em instrumentos financeiros do mercado regulado – como ações, obrigações ou fundos de investimento – é incomparável face aos criptoativos que não são considerados valores mobiliários, onde as perdas de capital podem ser totais, sem qualquer possibilidade de recuperação de capital.

Considero especialmente nefasto que, essas perdas, para além de tudo o que de negativo podem representar para aqueles que as venham a sofrer, têm também uma agravante pelo facto de deixarem de estar disponíveis para serem canalizadas para uma aplicação alternativa mais ligada à criação de valor e bem-estar na economia.

Não sendo razoável, nem possível, proibir os investidores de aplicarem o seu dinheiro da forma que entenderem, é importante não só assegurar que conhecem bem os riscos que estão a correr, mas também tornarmos comparativamente mais fácil e atrativo o investimento em instrumentos disponíveis no mercado regulado e supervisionado.

Que comentário lhe merece o relatório Draghi para a competitividade da Europa?

A UE está a trabalhar na criação de um mercado único de capitais para melhorar as possibilidades de financiamento das empresas e oferecer novas oportunidades aos aforradores e investidores, independentemente do local onde estejam estabelecidos. A União de Mercado de Capitais é o game changer?

Antes de mais, é importante referir que o mercado de capitais não é uma realidade que seja paralela e desligada do resto da economia. Como tal, o dinamismo económico, mais cedo ou mais tarde, reflete-se no mercado de capitais e a inversa também se aplica. Nesse sentido, e sem descurar que o próprio mercado de capitais também influencia a restante economia, creio que uma das principais conclusões que se podem extrair do relatório Draghi tem sobretudo a ver com a necessidade de atuar na concretização de um verdadeiro mercado único de bens e serviços e de reforçar os graus de liberdade económica das empresas que atuam no espaço europeu.

A arquitetura do mercado de capitais europeu e da sua supervisão, contemplada na União do Mercado de Capitais (CMU), sendo uma peça importante, não é um substituto para o que é necessário fazer em muitas áreas que não têm uma relação direta ou forte com essa mesma arquitetura. Alguns elementos de que já falei dependem, no essencial, da concretização da CMU.

Como é o dia-a-dia de trabalho na CMVM?

Se tivesse que escolher uma só palavra para caracterizar o dia-a-dia da CMVM, escolheria “intenso”; se a opção fosse em duas, escolheria “rolo compressor”. A escolha resulta da conjugação da variedade de temas, da sua cadência, conjugada muitas vezes com a imprevisibilidade com que surgem, bem como da sua complexidade e do impacto que as decisões que são tomadas têm, ou podem ter, na vida de muitas pessoas e das empresas.

Vai trabalhar de mota ou é só uma coisa de fim de semana? Alguma vez pensou em participar numa concentração de motards?

Relativamente à mota, que vem desde muito jovem, a disponibilidade para andar de mota reduziu-se muito, mas, por vezes, não resisto e venho de mota para a CMVM. Gosto sobretudo de passear com um pequeno grupo de amigos que partilham a mesma paixão pelas duas rodas.

Qual a sua citação preferida?

Não podemos impedir que falem mal de nós, mas podemos impedir que o façam com razão.

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