Desconheço se René Magritte algum dia visitou Portugal. Sabemos que é considerado, por muitos, um nome maior das artes e um dos maiores artistas que o Reino da Bélgica já deu ao mundo. Magritte deixou um acervo artístico muito importante sendo, justamente, um nome incontornável do Surrealismo. Mas o legado que deixou, na pintura, certamente influenciou a política em Portugal e deixou um traço absolutamente marcante na sociedade portuguesa, senão, vejamos:

Na Saúde, assistimos todos os dias ao surrealismo no SNS. Uma consulta de especialidade pode demorar dois ou três anos e a tendência é para aumentar. A questão da ala pediátrica do Hospital de S. João devia fazer corar de vergonha qualquer governo. Os serviços de urgência, de qualquer hospital público, são um imenso centro de saúde aberto 24h. O falhanço da rede de cuidados de saúde primários canaliza, ano após ano, a população para as urgências.

No sector da Educação, assistimos recentemente à discussão sobre a eliminação das propinas nos cursos de licenciatura. Não existem, nem nunca poderão existir propinas grátis, porque a frequência do ensino superior público tem um custo. A questão é saber quem paga. Defendo que o apoio social deve cobrir os custos das propinas, para os mais necessitados, a par do alojamento e que quem realmente pode pagar não devia ficar isento desse custo. Na prática, tal já acontece. Poderá haver uma simples revisão, em alta, dos valores dos rendimentos familiares que permitem acesso ao apoio social.

O atraso sistemático no pagamento das bolsas ou a notória falta de alojamento deviam ser discutidos. Mas não. O que se discute é a eliminação de propinas. Mas o surreal não fica por aqui e que neste sector se prende com a precariedade laboral no ensino superior público, qual escravatura em versão 2.0.

Poucos saberão que há docentes com vínculo contratual, mas com vencimento zero. Não creio que exista um único contrato, em Portugal, que vincule um cidadão a uma empresa privada sem a devida remuneração. Na caso do Estado, não creio que existam juízes, médicos ou diplomatas com contrato e sem vencimento, mas existem docentes do ensino superior público, sem vencimento, vinculados contratualmente.

Muitos perguntarão qual a razão que leva esses colegas a assinarem um contrato do qual não resulta qualquer remuneração. Penso que a resposta talvez resida na esperança em melhorar o currículo ou ganhar experiência docente e, dessa forma, um dia poderem ingressar, na carreira, através de um hipotético concurso.

No entanto, não existe qualquer garantia de tal acontecer e na maioria dos casos, tal não acontece. Por outro lado, existem colegas, a tempo parcial com remuneração, que ao fim de 10, 15 ou 20 anos ainda estão a prazo. O contrato termina habilidosamente a 31 de Julho e no subsequente mês de Setembro inicia-se também habilidosamente um novo contrato. Se 10, 15 ou 20 anos não é uma necessidade permanente das instituições públicas, pergunta-se então o que é uma necessidade permanente…

De que está à espera a tutela para proibir a contratação de docentes a custo zero? Que exemplo dá o Estado ao pactuar com esta situação? Se o Estado permite isto, o sector privado poderá fazer o mesmo, copiando estas práticas? O mesmo Estado que obriga à redução a escrito de todo e qualquer contrato de trabalho em funções públicas “fecha os olhos” e permite que exista um contrato com remuneração zero.

A tutela que todos os meses emite despachos orientadores sobre todos os assuntos (vagas, condições de acesso, requisitos de acesso, etc.), está à espera de quê para emitir um despacho orientador que proíba a contratação de docentes com remuneração zero e obrigue as instituições a remunerar devidamente, seja em tempo integral ou parcial, o trabalho realizado?

Já agora e porque o Orçamento do Estado (OE) é a principal fonte de receita das Universidades e Politécnicos públicos, como houve financiamento via OE que não foi gasto, porque houve contratos com remuneração zero, que tal solicitar a devolução, à tutela, das verbas não gastas? Caso tal não seja feito, o “crime” continuará a compensar.

A política deixa de ser realista quando atinge os limites do racional, da metafísica e contrasta com a realidade com a qual, neste caso, não se funde.  Tudo isto é Magritte, que nos habita em permanência. Tudo isto é surreal. E tudo isto em Portugal.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.