Muito se tem falado do declínio da Europa. A possibilidade de se criar um clima de paz no velho continente, que evite acontecimentos dilacerantes como aqueles que o atingiram no século XX, parece estar seriamente comprometida. Para isso, muito tem contribuído a mediocridade das lideranças europeias. Dada a dimensão do tema, limitar-nos-emos a assinalar apenas alguns dos casos mais marcantes.

As guerras intraeuropeias do século XX contribuíram decisivamente para a redução da sua importância geoestratégica. Como resultado da II Guerra Mundial, as potências europeias ficaram, pela primeira vez na história, subordinadas a uma potência não europeia e foram amputadas dos seus impérios coloniais, apesar da resistência de algumas delas aos processos de descolonização. A Europa foi sempre a grande perdedora das guerras ocorridas no seu espaço geográfico, mas nada aprendeu.

O fim da Guerra Fria não só permitiu a afirmação dos EUA como a grande potência global, como proporcionou à Europa, entretanto libertada das grilhetas da Guerra Fria, uma oportunidade histórica única de afirmação internacional, não aproveitada. Houve forças que procuraram seguir esse caminho de libertação, mas não conseguiram prevalecer relativamente aos que defendiam um papel de subordinação estratégica aos EUA.

O soft power norte-americano foi, e continua a ser, um instrumento poderoso e eficaz de socialização das elites políticas europeias, fazendo com que subordinem os interesses nacionais e coletivos da Europa aos dos EUA. Não teve grande futuro político quem, na década de noventa, colocava a autonomia europeia à frente do designado elo transatlântico. As iniciativas, para levar por diante a ambição de tornar a Europa num polo de decisão estratégica, foram devidamente sabotadas por Washington e pelos seus servidores internos colocados em centros de decisão, sobre os quais Washington manteve sempre um droit de regard.

Temos presente, por exemplo, as tentativas de levantar uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e de se avançar com a construção de uma Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), cuja evolução foi minada pelos britânicos, ao serviço de interesses não europeus. Não será, pois, de estranhar a oposição do presidente Barack Obama ao BREXIT.

A concretização desse projeto de domínio global tornou-se na política oficial dos EUA. Os geoestrategistas norte-americanos deram contributos decisivos para a sua articulação, sugerindo caminhos às lideranças instaladas nos centros de poder em Washington. As ideias de nação indispensável e do excecionalismo americano, proferidas vezes sem conta pela então secretária de Estado Madeleine Albright, faziam parte da concretização desse projeto.

A doutrina Wolfowitz (1992), concebida para consolidar o estatuto de superpotência dos EUA, tinha como primeiro objetivo impedir o ressurgimento de um novo rival, quer no território da antiga União Soviética, quer noutro local, nomeadamente na Europa. Nada melhor, para fazer isso acontecer, do que “seduzir” as elites europeias. O pensamento que subjaz a esse projeto foi posteriormente consolidado por vários think-tanks e académicos, entre outros por Zbigniew Brzezinski no seu “The Grand Chessboard” (1997).

O plano era e continua a ser o mesmo. O alargamento da NATO é um capítulo desse processo, neste caso orientado contra a Rússia. A inclusão da Geórgia e da Ucrânia na Aliança seria a cereja no topo do bolo. Antevendo a reação de Moscovo e a instabilidade que daí adviria, a França e a Alemanha opuseram-se. Na Cimeira da NATO, em Bucareste (2008), o plano enfrentou alguns obstáculos. Para indicar que não permitiria a colocação de bases militares na sua fronteira, em 2008, a Rússia envolveu-se numa guerra na Geórgia. Mesmo assim, o recado não foi entendido.

Entretanto, os EUA instalaram sistemas de defesa antimíssil na Polónia e na Roménia, no âmbito da Abordagem Europeia Adaptativa por Fases (EPAA), da NATO, para fazer face a potenciais ameaças de mísseis balísticos provenientes… do Irão. Estes destacamentos foram acordados no âmbito do plano de Defesa da NATO contra Mísseis Balísticos (BMD), de 2010, na sequência da revisão dos planos do escudo antimíssil da era Bush pela Administração Obama, em 2009. Na prática, isto significa colocar misseis sensivelmente a 5/7 minutos de Moscovo e de S. Petersburgo, sugerindo de modo desengonçado e pouco convincente de que era para fazer face à ameaça iraniana.

Com base nas premissas enunciadas, não será difícil compreender o que aconteceu na Ucrânia nos últimos 20 anos, nomeadamente o golpe de estado que derrubou um governo democraticamente eleito, como parte do necessário confronto para derrotar e esgotar Moscovo. Por isso, há que prolongar a guerra, até que a Europa esteja em condições de combater a Rússia, não importando o que isso possa custar ao povo ucraniano.

Terá sido este o raciocínio que levou o Diretor do Instituto de Economia e Estratégia Militar Mundial, na Escola Superior de Economia, Dmitri Trenin, a escrever no Kommersant que a guerra na Ucrânia é uma “guerra por procuração do Ocidente contra a Rússia. E este confronto, em si mesmo, faz parte de uma guerra mundial em curso, na qual o Ocidente está a lutar para manter a sua hegemonia mundial. Esta será uma guerra longa e os Estados Unidos, com ou sem Trump, continuarão a ser o nosso [da Rússia] adversário. Para nós, o que está em jogo nesta luta não é o estatuto da Ucrânia, mas a existência da Rússia.”

Se os dirigentes europeus tivessem percebido nestes termos a natureza da presente guerra na Ucrânia, ou seja, na perspetiva de uma confrontação entre potências de primeira grandeza, como na verdade é, como um capítulo da concretização de um projeto global, em vez do argumento pueril e panfletário da luta pela expansão da democracia, estariam hoje numa posição mais confortável e vantajosa. Infelizmente, décadas de socialização impossibilita-os de terem uma cosmovisão que se distancie do servilismo.

Exatamente por isso, em vez de racionalizarem a verdadeira causa da confrontação e de orientarem o seu esforço para a resolução do problema, envolveram-se numa linguagem belicista, agitando histericamente o papão de uma invasão russa aos países da NATO, sem terem qualquer indício credível dessa possibilidade, amplificando a ameaça recorrendo a uma série de porta-vozes presentes diariamente na comunicação social. Segundo eles, a guerra com a Rússia é inevitável.

Talvez fizesse sentido evitá-la, porque serão sempre perdedores e a sua situação estratégica piorará. A haver beneficiários do lado ocidental, hipótese extremamente remota e improvável, os europeus teriam de se contentar com os restos. Apesar desta evidência, as domesticadas elites políticas europeias aderiram, sem qualquer hesitação, ao presente rufar dos tambores.

Não deixa de ser oportuno recordar o que aconteceu na preparação de Maidan, em que a Alemanha de Merkel conspirou ombro a ombro com os EUA, mas, na altura de distribuir os despojos, foi posta de lado e não conseguiu meter no governo nenhum dos seus apaniguados. Não foi além de conseguir nomear Wladimir Klitschko para presidente da Câmara de Kiev.

A linguagem dominante em Bruxelas e nas chancelarias europeias tem pouco a ver com a criação de uma capacidade de dissuasão militar europeia, mas sim com uma vontade desenfreada de criar capacidades militares para uma confrontação militar com a Rússia. Por isso, não será de estranhar o alinhamento da retórica de Bruxelas com o das maiores potências do continente.

O atual comissário europeu para a defesa e espaço e antigo primeiro-ministro lituano Andrius Kubilius sugeriu uma “solução final” para a questão russa, ao apelar à Europa para se armar ativamente com vista a um “futuro confronto” com a Rússia. Algo semelhante disse a atual representante para a política externa da União Europeia (UE) e antiga primeira-ministra da Estónia Kaja Kallas, quando afirmou que a “desintegração da Rússia em pequenas nações não é uma coisa má.” Não deixa de ser extraordinário como a narrativa revanchista dos irrelevantes bálticos – os três juntos conseguem ter metade da população de Portugal – se consegue impor na política externa da UE.

O primeiro-ministro britânico Keir Starmer e o presidente francês Emmanuel Macron “cantam a mesma música”. Macron apelou a um aumento substancial das despesas de defesa da França nos próximos dois anos, citando ameaças iminentes, leia-se Rússia: “Desde 1945, a liberdade nunca esteve tão ameaçada e nunca foi tão grave”.

Para abrilhantar o cenário, o chanceler alemão Friedrich Merz, que disse mais do que uma vez ser o seu grande objetivo tornar a Alemanha a principal potência militar da Europa, a mesma pessoa que afirmou estar Israel a fazer o “trabalho sujo” por nós [Europa], veio declarar que os esforços diplomáticos para terminar a guerra na Ucrânia se encontram esgotados: “Esgotam-se quando um regime criminoso, recorrendo à força militar, põe abertamente em causa o direito à existência de todo um país e procura destruir as liberdades políticas de todo o continente europeu.”

Esta conversa assenta que nem uma luva na ambição alemã, de longa data, de se libertar do espartilho da Guerra Fria, de se rearmar e de se tornar a grande potência militar da Europa. A Alemanha, do ex-funcionário da Black Rock – Merz, caminha assim, com grande entusiasmo, para uma escalada sem precedentes contra a Rússia. A decisão de entregar misseis Taurus à Ucrânia é mais um dos seus capítulos, com resultados perigosos e muito incertos.

Do outro lado do Canal da Mancha acirra-se a histeria militarista contra a Rússia. O ex-chefe do Exército britânico, General Patrick Sanders, em entrevista ao Independent,, insta o governo a construir abrigos anti bombas devido à acrescida ameaça de Moscovo ao Reino Unido. Para ele, uma guerra com a Rússia dentro de cinco anos é considerada como um “cenário realista”. E acrescenta: “se a Rússia interromper as operações militares na Ucrânia, poderá lançar em poucos meses um ataque limitado contra um membro da NATO, e o Reino Unido será obrigado a responder. Isso pode acontecer até 2030”. Esta tese foi subscrita por outros dirigentes europeus. A opção dos decisores suecos de distribuir à população manuais de sobrevivência, como um preparativo para uma guerra ao virar da esquina, é reveladora da insanidade que atinge largos setores das elites políticas europeias.

Em vez de apelarem ao bom sendo e à contenção, estas elites estão sequiosas por envolver os seus povos na guerra, fazendo vista grossa das consequências irreversíveis que uma aventura dessas terá para a Europa e para a humanidade. À retórica adicionam-se os múltiplos indícios de preparação para um conflito. Por exemplo, o porto de Roterdão, o maior da Europa, está a reservar espaço para navios que transportem material militar; as provocações no mar Báltico aos petroleiros com destino a portos russos são cada vez mais frequentes; a ameaça de colocar uma força de países europeus (a coligação de vontades) na Ucrânia.

Muito se poderia acrescentar para apontar o indisfarçável e destemperado desejo de se avançar para uma confrontação. Dispensamo-nos de referir as insólitas declarações sobre o tema, do secretário-geral da NATO Mark Rutte.

Tudo isto sem haver do lado de Moscovo quaisquer preparativos para atacar um país da NATO ou pretender provocar uma guerra em larga escala, artificialmente lucubrada por dirigentes insensatos e desmemoriados. Depois de três anos a combater no Donbass, com as dificuldades conhecidas, sem recorrer à mobilização e sem ter nenhuma anunciada, contando apenas com contratados, é difícil imaginar qual o interesse da Rússia, com uma população de 144 milhões de habitantes, em querer atacar países da NATO, que não dispõem de matérias-primas ou de quaisquer recursos minerais significativos. Alguém terá de o explicar devagar e com seriedade.

Para não falar da capacidade militar para o fazer e da retórica distópica, que nuns dias afirma estar a Rússia falida e que noutros dias vai atacar a NATO. O futuro da Europa não pode ficar nas mãos do revanchismo báltico e alemão, que já estiveram juntos do lado derrotado da história, na II GG. Já agora, convinha relembrar ao longo dos últimos dois séculos quem atacou quem e como terminaram essas guerras. Talvez essa reflexão possa ajudar a compreender melhor o momento que se vive.

Estes apontamentos serão aproveitados para colar o autor à narrativa russa. Aviso os mais distraídos que não se trata disso, mas tão somente de salvaguardar os interesses da Europa, onde vivo, que só perderá com mais uma guerra.

Quem aposta as fichas na derrota e na fragmentação da maior potência nuclear do mundo devia, ao invés, dar entrada num hospício. Infelizmente, é quem está à frente dos nossos destinos.