No final dos anos de 90, poucos anos depois de ter terminado o curso de Psicologia, com o privilégio de ter um trabalho a tempo inteiro e de ter já iniciado uma vida fora da casa dos meus pais, reflectia sobre as diferenças sócio-culturais do nosso país no seio da Europa, no que dizia respeito às tarefas de autonomia dos jovens adultos.
Imerso no mundo associativo juvenil da altura, foi no ano da graça de 2000 que eu e a minha colega Carla Milhano escrevemos o livro “Manual de Sobrevivência Fora-de-Casa”, numa edição da Câmara Municipal de Torres Vedras. Fazíamo-lo com uma premissa baseada em alguns factos: os jovens portugueses saíam tarde da casa dos pais, cumprindo certas tarefas desenvolvimentistas para além do tempo que seria recomendável. Apontávamos o comportamento de pais e filhos, como o pouco estímulo à autonomização desde tenra idade e à medida das competências de cada jovem e a falta de experiências autonomizadoras, como a participação em associações e outras iniciativas cívicas, como algumas causas, que se juntavam às financeiras.
O conteúdo deste Manual reflectia a evidência científica de então e a realidade desta passagem para a vida adulta no contexto português desse tempo, sugerindo e recomendando, como seria próprio de uma espécie de Manual. Foi há mais de 20 anos e nunca suporia que o processo de autonomização estaria comprometido como agora, com o impacto combinado do difícil acesso a habitação, dos baixos salários e da precariedade a que, especificamente, os jovens estão sujeitos.
Se no prelúdio da pandemia se assistia a alguma mobilização, também dos mais jovens, para a resolução de uma crise climática, anos de pandemia depois, uma geração impactada no desenvolvimento de muitas das suas competências e com a saúde mental prejudicada vê-se agora perante a enorme dificuldade de aceder a habitação e condignamente.
Em 2022, os dados do EUROSTAT apontam para a idade média de 29,7 anos para a saída de casa dos pais em Portugal. Na UE é de 26, 4. Finlândia, Suécia e Dinamarca lideram a tabela, todos com uma idade média na casa dos 21 anos e qualquer coisa. É mais um indicador de desigualdade.
Quase uma década de atraso para começar uma vida autónoma, face ao pelotão da frente da Europa, é o que enfrentam os nossos jovens. No país que, após os 65 anos, é dos que têm menos anos de vida saudável pela frente. Mas acrescem outros importantes e significativos impactos negativos deste fenómeno (que decresceu em 2022, desconfia-se que devido à emigração).
Num enquadramento ultra rápido à autonomização, do ponto de vista da psicologia, ela é relevante para formação da identidade, regulação emocional, competências de tomada de decisão, relações interpessoais, sentido de responsabilidade e… saúde mental. E viver com independência dos pais, na sua própria casa, é essencial para esta autonomização.
No desenho de políticas públicas nem tudo é controlável. Todavia, estamos a fazer ainda muito pouco para poder controlar o que podemos e que ajudará a melhorar a actual situação e prevenir vindouras. Há muitos anos que defendo mais ciência a contribuir para as políticas públicas, mais estimativas de impacto destas e a sua monitorização e avaliação de impacto. Entre esses indicadores, teremos de conseguir antecipar mais o possível legado dessas políticas para as gerações futuras, em vez de, por vezes, apenas atirarmos aleatoriamente medidas, pela convicção que nelas temos ou pela pressão do que parecem ser os seus resultados mais imediatos.
“Oh inclemência, oh martírio, sois vós meu menino que eu ajudei a criar, que regressais a esta casa?”, dizia o mordomo no conhecido filme português dos anos 40 “O Pai Tirano”. Agora, dificilmente os mordomos, mas certamente muitos pais, podem dizer o mesmo. Não por boas razões. E muitas mais vezes não o poderão dizer pois da sua casa os seus filhos ainda nunca chegaram a sair.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.