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Manuela Ivone Cunha: “O que se entende por crime é variável no tempo e espaço”

Se Manuela Ivone Cunha pinta um retrato exemplar da evolução no tempo e da peculiaridade da criminalidade portuguesa no contexto ocidental no seu ensaio “Criminalidade e segurança”, nestas três Perguntas & Respostas deixa-nos algumas pistas sobre o cibercrime e os medos dos portugueses.
10 Março 2020, 17h37

 

 

A autora, doutorada em Antropologia com agregação em Sociologia, foi desafiada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos a plasmar num ensaio – “Criminalidade e Segurança” – o mundo da justiça criminal, no qual explora as crenças sociais, os mitos e os efeitos que os comportamentos criminosos produzem nas sociedades, nomeadamente o medo, a insegurança, a vitimação. Um texto clarividente, dirigido a um público alargado.

Manuela Ivone Cunha, do CRIA, Universidade do Minho, também assina o mini ensaio “Rumos da criminalidade“, no Jornal Económico, no qual explica que Portugal tardou a acompanhar a tendência europeia: “A meio do século passado, a proporção dos crimes contra as pessoas ainda prevalecia sobre a dos crimes contra a propriedade, e os níveis elevados de crime violento face aos países europeus eram alimentados sobretudo pelos homicídios em meio rural.”

Como definir crime?

Nenhuma definição de “crime” é líquida quanto à natureza das realidades que define, sejam o consumo de drogas ilícitas, a fraude, o furto ou o homicídio. Aquilo a que chamamos “crime” situa-se no espetro dos comportamentos que violam normas – no caso, normas penais se se adotar uma estrita aceção jurídico-legal. Qualquer história da criminalização e descriminalização de comportamentos permite, porém, entrever não só a evolução das leis, mas também quão heteróclito e mutável é o conjunto dos atos interditos e puníveis com sanções penais. Condutas como o adultério, a homossexualidade e a pornografia com adultos, a vadiagem e a mendicidade, ou, em parte, o consumo de estupefacientes, deixaram de ser crime, enquanto passaram a sê-lo a importunação sexual, as atividades perigosas para o ambiente ou a discriminação racial e religiosa. O que se entende por crime é variável no tempo e no espaço.

Para mais, crimes com designação idêntica podem abranger leques de condutas muito variáveis. O que conta como violação na Suécia e o critério de contagem de tais atos é mais amplo do que noutros países, daí este país tender a apresentar elevados índices deste crime em comparações internacionais, além de as vítimas se mostrarem menos relutantes em participarem-no às autoridades. É devido a esta variabilidade nas definições de crime e nas regras do seu registo que as comparações entre diferentes países devem basear-se não tanto em correspondências entre tipos e níveis de criminalidade, mas sim em tendências.

Como gere a sociedade portuguesa o perigo real e o perigo estimado?

Tanto nos inquéritos de vitimação realizados em Portugal como nos inquéritos internacionais em que o país participou (ICVS 2004 e 2005) tem sido assinalado o pronunciado sentimento de insegurança dos Portugueses, em especial nas cidades. Num total de 30 países, Portugal contou-se entre os 4 com mais baixo risco de vitimação e os 3 com risco menos elevado quanto a crimes de confronto direto ou vitimação violenta.

Portugal salientou-se por estar no top-10 dos países com níveis de receio mais elevados, onde as pessoas se dizem mais inseguras nas ruas à noite, com destaque para mulheres e idosos, e ainda onde a possibilidade de se ser visado por um furto é mais antevista. O país destacou-se ainda pela fraca relação entre a probabilidade de vitimação e o medo em contexto de rua.

Nos inquéritos locais e internacionais tem-se procurado compreender esta insegurança a outra luz que não apenas a dos riscos de vitimação criminal, relacionando-a com um sentimento de vulnerabilidade mais amplo, alimentado pela desconfiança nas interações sociais e a pela insatisfação com as condições de vida. Categorias sociais mais expostas a riscos variados como mulheres, idosos e minorias étnico-raciais podem também manifestar-se mais inseguras em razão dessa vulnerabilidade específica.

Em geral, sabe-se hoje que o sentimento de insegurança é um fenómeno mais vasto que o da criminalidade e até certo ponto independente dele. Não deve, pois, surpreender que os níveis de medo não estejam sintonizados com os do crime. Tal não significa que esse medo seja irracional ou desconectado das realidades do risco.

O ciberespaço potenciou novas formas de criminalidade?

Se as formas comuns de criminalidade predatória têm vindo a diminuir, o mesmo não acontece com a que recorre a meios informáticos. Os meios convencionais podem ter-se tornado menos eficazes, mas expandiram-se as oportunidades criminais através da internet: não só as burlas em plataformas informáticas e compras online, mas também todo o tipo de crimes informáticos, quer em Portugal, em particular desde 2014, quer noutros países.

No ciberespaço acolhem-se novas e velhas formas de criminalidade que se veem potenciadas por este meio, desde a usurpação de identidade e o terrorismo à fraude, difamação e assédio, que pelas suas características pode ser tão ou mais virulento que modalidades de assédio clássicas. A “suavização dos costumes”, explicação avançada para o declínio da criminalidade clássica contra as pessoas, em especial a violenta, volta a ser desafiada por estas realidades emergentes. Por fim, várias formas de criminalidade podem ter sido transferidas da “rua” física, hoje até certo ponto já mais blindada contra incidentes criminais, para a “rua” virtual, por enquanto mais abrigada de formas clássicas de controlo. Ao invés do trajeto descendente nos crimes convencionais, os que proliferam neste espaço estão em ascensão.

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