As declarações do Presidente da República num encontro com representantes da imprensa estrangeira causaram polémica. Marcelo falou demais, não foi correto para com Montenegro e Costa, atirou o próprio filho aos leões no “caso das gémeas” e abriu a porta ao pagamento de reparações, por Portugal, pela escravatura e por atos cometidos no período colonial.

Os outros pontos da intervenção presidencial merecem também ser analisados, mas centremo-nos na questão das reparações, que não passaram despercebidas no exterior. Não por acaso, a ministra brasileira da Igualdade Racial, Anielle Franco, pediu de imediato “ações concretas” ao Governo português, sobre o legado da escravatura.

Em primeiro lugar, a forma e o timing de Marcelo não foram felizes, para além de, mais uma vez, fragilizar o Governo, precisamente na semana em que Lisboa recebeu os chefes de estado dos PALOP que vieram para as comemorações do 25 de Abril. Mas o Presidente está certo no essencial.

Nas colónias portuguesas, a escravatura foi formalmente abolida em 1869, embora tenha continuado a existir durante mais algumas décadas de forma encapotada. Mas um português “branco” de hoje é tão responsável pela escravatura como uma pessoa descendente de escravos, ou seja, nada. As desigualdades causadas pela escravatura continuam a existir, mas a culpa não se transmite pelos genes.

Outra coisa, porém, é a responsabilidade do Estado português, como entidade soberana que durante séculos promoveu e lucrou com a escravatura e com o tráfico transatlântico de escravos. O Estado português deve assumir a sua responsabilidade, como diz o Presidente da República, ainda que isso implique o pagamento de reparações, se for possível fazer isso com justiça, rigor e bom senso, de uma forma que realmente beneficie os descendentes comprovados das pessoas escravizadas e com valores que sejam simultaneamente justos e realistas.

Porém, o mesmo se pode dizer do Estado brasileiro, que do ponto de vista jurídico é o sucessor do Reino do Brasil, um dos estados constituintes do então Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815/1822), que por sua vez sucedeu ao Estado do Brasil, a designação oficial da então colónia (1548/1815). Com a independência e o tratado que a reconheceu, assinado em 1825, o novo Império do Brasil herdou todos os direitos, pretensões territoriais e obrigações do antigo Reino e da colónia que o precedera. Podemos partir do princípio que também herdou uma parte das responsabilidades históricas da antiga América Portuguesa em áreas como a escravatura e ao tratamento dos indígenas. Aliás, o novo estado não só herdou essas responsabilidades como apenas aboliu a escravatura em 1888, 66 anos após a independência. E ainda hoje ocorrem situações de escravatura, o que já levou a uma condenação num tribunal internacional.

De resto, para lá da responsabilidade da Coroa (i.e., o Estado, tanto a nível central como colonial), quem construiu o Brasil com recurso a mão-de-obra escrava não foram os portugueses que ficaram deste lado do oceano, mas sim os que para lá foram colonizar o país e tentar fazer fortuna, como os traficantes de escravos de Salvador, os senhores dos engenhos da Baía, os fazendeiros de café de Minas e os célebres bandeirantes, que desbravaram o sertão para capturar indígenas e cujos descendentes integram as chamadas “familías quatrocentonas” da elite de São Paulo. Foi essa oligarquia de origem maioritariamente portuguesa que mais tarde conduziu o processo de independência do Brasil e que, em larga medida, governou o país nos últimos 200 anos, primeiro no período do Império e depois durante os vários regimes republicanos.

Podemos, por isso, responder a Anielle Franco que se Portugal tem responsabilidade histórica em relação à escravatura, também o Brasil a tem e que o governo de que a ministra faz parte deve ser igualmente chamado a responder ao repto de Marcelo. Diria mesmo que o pagamento de eventuais reparações pelo Estado português só fará sentido se for feito em conjunto com aquele que era o outro pilar do antigo império luso, o Brasil. Porém, tudo indica que esse processo não será fácil. Ainda há poucos anos, em 2018, o senado de Brasília arquivou um plano que, em teoria, permitiria indemnizar mais de 80 milhões de brasileiros afrodescendentes.

Este é um debate que ainda está no início e que deve ser conduzido com racionalidade. “O passado é um país estrangeiro; lá fazem as coisas de forma diferente”, escreveu L.P. Hartley. Olhar para o passado sem atender aos valores e costumes de cada época, fazendo ”cherry picking” histórico, não ajuda à verdade e à justiça. Em vez disso, só contribui para a polarização de uma sociedade já muito dividida e para minar a democracia, numa altura em que, com a ascensão dos extremismos, não a podemos dar por garantida.