Marcelo Rebelo de Sousa escreve com a mão esquerda e a direita e ainda consegue ditar discursos ao mesmo tempo. Era o brincalhão que tocava às campainhas para acordar pessoas. É a melhor fonte dele próprio, continua com o mesmo veneno dos dias em que colaborava com o “Expresso” e a perder imenso tempo a falar com jornalistas e a influenciar notícias e primeiras páginas, aliás, quem não percebe isto é ingénuo.

Tem uma capacidade inata de dizer uma coisa e o seu contrário em poucos minutos, tal como após uma graçola quase infantil tem o supremo prazer de ser frio e pontiagudo como um estilete para destruir alguém (agora em privado). Pode tentar fabricar a sua imagem, mas a própria força institucional da Presidência da República não lhe dá a gravitas para apagar o eterno e emérito papel de criador da vichyssoise que nunca existiu. Como me dizia uma pessoa que muito considero e que o conhece bem, em suma, “um troca-tintas”. Um homem de duas caras.

Está no segundo mandato, época em que, tradicionalmente, Belém afia as facas, acelera atritos com São Bento e se causa desgaste ao primeiro-ministro. Marcelo nunca seria excepção. O pontapé de saída da crise larvar deu-se com as questões relacionadas com a travagem, ou não, do desconfinamento, onde a céu aberto ambos mostraram caminhos opostos, parecendo até mais responsável perante a situação António Costa do que o inquilino de Belém.

Contudo, onde Marcelo exibiu claramente ao que vem neste mandato foi no encerramento da conferência do Tribunal de Contas. Na plena posse das suas faculdades de cínico, garantiu que até 2023 fará tudo para evitar crises políticas e institucionais que prejudiquem a aplicação dos 16,6 mil milhões de euros da bazuca europeia, mas também na posse das suas faculdades de assassino profissional afirmou: “Cabe aos portugueses dizerem pelo seu voto em 2023 o que pensam e o que querem acerca do uso da oportunidade a não desperdiçar, sendo certo que vão a tempo de escolher continuar o mesmo caminho ou fazer caminho com alterações de 2024 em diante”. Mais claro é impossível.

Rapidamente uma relação institucional de quase osmose entre PR e PM deu lugar à faísca de quem quer trabalhar para o seu legado, sobretudo no que toca ao futuro do centro-direita em que Marcelo quer pôr e dispor. Tentou ajudar na sombra Montenegro, deu gás a Carlos Moedas em Lisboa, porém a campanha tornou-se caricatural por erros próprios do candidato. Tudo isto para soterrar Rui Rio, que considera uma figura menor e quase ridícula, um mero amanuense, e criar muros para o reaparecimento de Pedro Passos Coelho que sempre destratou quando comentava na TVI.

No “Trono de Sangue” do Akira Kurosawa, a melhor adaptação de Macbeth de Shakespeare ao cinema, ouve-se: “Para não se ser morto, é necessário matar primeiro”. Marcelo precisa de eliminar potenciais sombras para tentar perpetuar o seu papel. O azar dele é que selfies e abracinhos têm prazos de validade curtos e não é isso que o tirará de um minúsculo rodapé da história. Tinha duas vias possíveis: a de líder ou de brincalhão hipocondríaco. Marcelo, o homem que entra nas farmácias a perguntar por novidades de comprimidos e xaropes, ficou carimbado por esta segunda via. Afinal, é o que lhe está no sangue.

 

O autor escreve segundo  antiga ortografia.