Tenho escrito há vários anos que vivemos tempos particularmente difíceis, pontuados por um extremo individualismo e pela nossa incapacidade de ir além do designado activismo do sofá. Somos pródigos em manifestações facebookianas, muitas vezes tratando de ofender gratuitamente pessoas apenas porque delas discordamos, como tem sucedido à Raquel Varela a propósito do seu apoio à greve dos motoristas.
Gostamos muito mais de discutir pessoas do que ideias, sendo que não hesitamos em ignorar as razões de um qualquer grupo de trabalhadores se não gostarmos do seu porta-voz. Por outro lado, no exacto momento em que nos é pedido que façamos mais do que uns likes, o típico português, instalado numa qualquer toalha de praia ou à frente do televisor, é incapaz de ver para além do seu próprio umbigo.
Acima de tudo, acima de qualquer princípio, acima de qualquer solidariedade, está o desejo de não sermos incomodados, de continuarmos a fazer a nossa vidinha do dia-a-dia. Um dia, quando chegar o nosso, estranhamos estar sozinhos, sem que consigamos perceber que o isolamento a que votámos outros é recíproco.
Vem isto a propósito das últimas greves, em relação às quais o Governo, dito de esquerda, tem tido uma posição de força que nunca foi antes vista. Para mim, eterna desalinhada, ver polícias ou militares a conduzirem camiões sem estarem habilitados para tal é tão grotesco quanto debater-me com a total inércia perante o que foi denunciado, seja no que se reporta ao não pagamento de impostos sobre componentes salariais, seja quanto ao acervo de horas extraordinárias que estes trabalhadores executam.
Paralelamente, ver o estabelecimento de serviços mínimos nos moldes em que foram decretados para uma companhia aérea que pauta o seu comportamento por ignorar de forma ostensiva a legislação portuguesa só pode querer significar que o PS, perante o silêncio dos demais partidos que o apoiam, abandonou de forma declarada os trabalhadores, colocando todo o seu afinco na criteriosa campanha publicitária que tem desencadeado contra eles.
Tudo isto, claro, só é possível porque aceitamos tudo o que nos servem, sem sequer nos questionarmos. Gostamos de seguir um caminho certinho, que não nos incomodem com greves alheias ou reivindicações que, a terem sucesso, não revertam imediatamente para o nosso bolso.
Não é o meu caso. Escolho o meu próprio percurso e não aceito que me dirijam na viagem. Por isso, socorrendo-me de Régio, posso não saber exactamente para onde me dirijo mas tenho a certeza que não vou por aí. Sei, também, que não estou sozinha, nesta marcha de desalinhados, desde logo porque, “mesmo na noite mais escura, há sempre alguém que diz não”. A mim, isso basta-me.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.