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Marega: do subúrbio de Paris ao inferno de Guimarães

Calmo, paciente, por vezes desajeitado. Moussa Marega arriscava a ser apenas mais um jogador a pisar os relvados nacionais. O racismo, sempre presente nos estádios desportivos, alterou-lhe os planos e levou-o a lidar de forma desassombrada com o preconceito que teima continuar a existir no futebol nacional.
  • Hugo Delgado/EPA via Lusa
18 Fevereiro 2020, 08h15

Como em tantas outras geografias de África, as três décadas que acabaram com o século XX foram, no Mali, de profunda perturbação política, com protestos, golpes de estado, atropelos dos mais variados à democracia e uma economia completamente desestruturada. No ano em que Moussa Marega nasceu, 1991 – numa altura em que novo golpe de Estado abria caminho a um governo liderado por Alpha Oumar Konaré (condecorado em Portugal em 2002 com a Ordem do Infante D. Henrique) – os seus pais estavam a muitos milhares de quilómetros do centro do furacão: viviam em Les Ulis, um subúrbio de Paris onde estavam acantonados muitos casais vindos de tantos países africanos.

Ali haveriam de nascer, ou já teriam nascido, Thierry Henry (futura referência de Marega), Anthony Martial, e Patrice Evra, que como Marega haveriam de tornar-se jogadores famosos. Nada indica que a vida em Les Ulis fosse particularmente traumática, mas vem nos livros de história que os subúrbios de Paris, onde iam surgindo as bidon ville (bairros de lata), eram locais onde o racismo era uma espécie de modo de vida.

Não apenas o racismo étnico, mas também o racismo social – que marcou a vida e o desespero de milhares de portugueses tão brancos como a maioria dos franceses – era o dia-a-dia dos jovens negros que deambulavam pelos bairros parisienses mais afastados do centro glamouroso e apinhado de turistas pouco interessados em inquietações.

O desporto era por aqueles dias – possivelmente como ainda sucede – uma das saídas ‘legais’ para uma vida que dava mostras de não ser tão interessante como era suposto. “A minha primeira recordação de infância é que andava sempre com uma bola, nos pés ou nas mãos, o futebol esteve sempre no centro da minha vida. Crescemos com o futebol e amávamos este desporto”, disse o jogador a um site da UEFA.

O jovem Moussa Marega debutou no Évry FC (que já não existe), de onde passaria para o Poiré-sur-Vie (em 2012) e mais tarde para o Amiens SC – clube que já não era um perfeito desconhecido. Mas os tenpos era de dificuldades: “Ninguém dá nada às pessoas de Ulis ou de Évry, temos de lutar por tudo aquilo que queremos”, disse numa crónica para a UEFA sobre a sua vida, onde não era suposto que o racismo fosse a figura central.

Passou o segundo semestre de 2014 em Espérance Sportive de Tunis, mas não chegou a fazer uma única aparição devido a problemas burocráticos. Esse impasse acabou por colocar Portugal no radar do jogador – que pretendia afirmar-se como goleador (Didier Drogba e Samuel Eto’o eram os seus ídolos, depois de passada a ‘fase Theirry’), que chegaria à ilha da Madeira em 2015, depois de o Marítimo ter pago 75 mil euros. Velocidade e força física eram as suas caraterísticas principais – e também uma leve e súbita atrapalhação de quando em vez, que o faziam perder bolas e marcar menos golos. Andava num Ford Focus emprestado.

Um ano depois, o F. C. Porto iria buscá-lo, por 3,8 milhões de euros, mas a sua primeira passagem pela equipa não surtiu os efeitos desejados. A página ‘Pés do Marega’ no Facebook, que tinha como foto de perfil dois tijolos, haveria de trazer-lhe muitas dores de cabeça e ficar famosa entre os adeptos portistas. Os comentários racistas não podiam faltar – ou não fosse a página dedicada ao futebol.

Em julho de 2016, Marega acabou por ser emprestado (de borla) ao Vitória de Guimarães. E de repente tudo aconteceu: marcou muitos golos, ajudou a equipa a ascender nas classificações e, no final da época, o empréstimo prescreveu, não fosse o Porto fazer outra vez uma grande asneira. Passou a andar num BMW X6.

Muçulmano praticante, Marega é descrito pelos colegas como uma personalidade calma mas forte, que gosta de ajudar e prefere não ter de implicar com ninguém. Prova da sua ‘bondade’ é a notoriedade que, diz-se, ganhou no Mali (de que é jogador da seleção nacional), principalmente quando debutou na Champions – um palco enorme que chega a todos os continentes. A criançada da escola passou a ter um ídolo ‘caseiro’, ao invés de procurar nos ‘cromos’ dos outros países.

Marega responde à altura. No ano passado, convidou 24 crianças e seis adultos, todos eles com ligação ao ‘seu’ Évry para assistirem ao jogo com a equipa italiana do Roma, do qual Marega saiu como a principal figura. No final da partida, o jogador tirou uma foto com os convidados, todos eles equipados a rigor: com a camisola azul e branca e o nome de Marega nas costas.

Aparentemente, ninguém se lembra – até domingo passado – de lhe terem visto uma fúria tão enorme como aquela que demonstrou quando foi alvo de um dos ataques mais violentos de que há memória no vasto histórico de racismo ligado ao desporto e ao futebol em particular. Antes da fúria, valia 24 milhões de euros (chegou a ‘cotar’ nos 30 milhões), mas é bem possível que esse valor fique ensombrado pelo poder com que a forma desassombrada como lidou com o grupo de imbecis que estava nas bancadas do Vitória de Guimarães foi observada um pouco por todo o mundo.

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