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Mário Assis Ferreira: “A ausência de azar dá muito trabalho”

Em entrevista, o chairman da Estoril Sol recorda os oito anos que passou no Brasil, conta como foi trabalhar com Stanley Ho durante três décadas e fala da escrita, da música, da vida e da morte. Descrevendo-se a si mesmo como um “otimista pragmático”, o maior gestor de casinos português não acredita na sorte, mas somente na ausência de azar. A qual, assegura, dá muito trabalho.
  • Cristina Bernardo
7 Novembro 2017, 07h00

É chairman da Estoril Sol há três anos, tendo deixado de ser o CEO. Não sente falta das funções executivas?
É um sentimento contraditório. Por um lado, é o sentimento de alguém que tendo estado, durante 30 anos, à frente de um determinado projeto e tendo tido uma intervenção muito personalista, é óbvio que tal me crie algum tipo de frustração por sentir que não tenho essa pressão quotidiana. Por outro lado, como sou uma pessoa absolutamente incapaz de se reformar, esse estatuto de “irreformável” fez-me criar novas frentes de interesses, novos desafios, que me preenchem o tempo e me estimulam num processo de vida em que a descoberta de novos horizontes e novos projetos é algo sempre constante na minha maneira de estar.

Que desafios tem agora?
Tenho-os encontrado essencialmente na cultura e na arte. Por isso, publiquei dois livros, passei a escrever mais, deu-me tempo para pensar mais, passei a ter uma vida mais normal. Durante 30 anos trabalhei 16 horas por dia, embora aos fins de semana “só” trabalhasse dez horas! Agora passei a ter a possibilidade de tirar férias, não digo de um mês porque não sei o que hei-de fazer sem estar concentrado em algo durante um mês, mas posso ter um período de descontração durante uma semana. Por exemplo, vou partir para Itália no dia 6 e tirar quatro dias para atividades culturais. Além disso, há um novo desafio que me ocupa no âmbito da minha atividade profissional propriamente dita, ou seja, a gestão de casinos, e que decorre de ter sido convidado pelo Congresso brasileiro para integrar, como perito internacional, o grupo de trabalho que está a preparar a nova lei do jogo no Brasil. E isso tem-me consumido centenas de horas, com a redação de projetos de diplomas, correções, aperfeiçoamentos da legislação que vai sendo apreciada no Congresso e que me obrigou a ir cinco vezes ao Brasil, só no ano passado, para intervenções na Câmara de Deputados e no Senado.

Conhece bem o Brasil?
Vivi lá oito anos [1975-1983] e guardo as melhores recordações, sendo certo que o Brasil de hoje não é o que conheci. Não é o Brasil que desfrutei, em que, jantando às sextas-feiras na churrascaria Plataforma com o Tom Jobim, de quem era muito amigo, íamos depois para a casa dele, para noites de boémia, em que as nossas evocações artísticas afloravam, embora as minhas fossem as de um simples amador. Ele era um génio da música e criavam-se tertúlias musicais com outros grandes nomes da música brasileira, designadamente Vinicius de Moraes. Ficávamos noite dentro com uma vista sumptuosa sobre a Lagoa Rodrigo Freitas e, de vez em quando, tocava-se a “Garota de Ipanema” e via-se, lá ao fundo, a rua onde ela tinha passado e inspirado Tom Jobim. Esse Brasil já não existe. O Brasil é hoje mais inseguro, é um Brasil que anda em busca do seu próprio caminho no campo político e social. Portanto, deixou de ser para mim aquele “El Dorado” onde gostaria de passar o resto da minha vida. Hoje em dia, considero que Portugal é o local ideal para se viver, pese embora todas as idiossincrasias que ainda por cá proliferam…

No Brasil dedicou-se a várias atividades.
Entrei numa empresa de exportação de café solúvel, subi rapidamente na hierarquia e, enquanto vice-presidente do grupo, conseguimos transformar-nos no segundo maior exportador de café solúvel do mundo. Entretanto, fiz uma fábrica de sumos de frutas tropicais em João Pessoa, no estado de Paraíba, e ganhámos uma franquia da Coca-Cola que nos permitiu fazer uma fábrica da Coca-Cola, também em João Pessoa, que cobria uma grande parte do nordeste brasileiro, em termos de distribuição. Nessa altura vivi duas experiências curiosas: por um lado, batemos o recorde mundial da própria Coca-Cola na construção de uma fábrica e na montagem das linhas de distribuição em apenas 6 meses; por outro, tive a oportunidade de conhecer o estado de Paraíba e, por isso, de conhecer um outro Brasil, diferente daquele que era o do Rio e de São Paulo. Curiosamente, o Estado de Paraíba tem a mesma extensão de Portugal e percorrer esse território, conhecer a pobreza, conhecer a seca interminável que semeava os esqueletos de animais ressequidos, conhecer os “bóias-frias” – nome que se dava àqueles homens que procuravam cultivar a terra quando a chuva, por providência divina, caía e que eram obrigados a migrar sem quaisquer garantias salariais ou sindicatos, para a construção civil em São Paulo ou Rio de Janeiro –, tudo isso ensinou-me a compreender o Brasil e a profunda dicotomia que nele coexistia.

Alguma vez se sentiu deslocado?
Não. Nunca me senti deslocado. Sempre tive uma grande capacidade de adaptação e de flexibilidade. Nunca o senti, por variadíssimas razões: primeiro porque estava muito ocupado, por outro, porque fui recebido no Brasil, não digo de braços abertos – porque, obviamente, tive de enfrentar as dificuldades sentidas por tantos outros portugueses que, naquela época pós-revolucionária, circulavam no “calçadão” à procura de emprego no Brasil –, mas tive a sorte de a minha primeira tentativa ter sido logo concretizada. Depois, a partir do trabalho que fiz e da forma como me posicionei, ganhei grandes amigos que ficaram para o resto da vida. Portanto, as relações que tive, que criei e que ainda mantenho no Brasil fazem com que sinta que ele seja o país onde talvez tenha vivido os anos mais felizes da minha vida. Talvez mais felizes do que aqueles que consigo viver em Portugal… E não será tanto por ter tido menores responsabilidades. Fui vice-presidente da Confederação das Associações Comerciais do Brasil, fui editorialista do “Jornal do Brasil” e ghost writer do então candidato à presidência do Brasil, o general João Figueiredo, que, tendo lido algumas das minhas peças escritas, me convidou para ser seu ghost writer, o que eu só aceitei após a promessa pessoal que me fez de que, ao contrário do que aconteceu em Portugal, em que a democracia tinha vindo de baixo para cima, ele se comprometia a fazer com que a democracia, no Brasil, viesse de cima para baixo. E cumpriu a palavra!

Porque regressou a Portugal?
Nunca deixei de ser um português convicto e, portanto, por mais confortável e realizado que me pudesse sentir em qualquer país, designadamente no Brasil, a verdade é que eu nunca vivi exatamente nele – havia um cordão umbilical que sempre me ligou à terra portuguesa. E, portanto, eu pairava nesse cordão imaginário, no meio do Oceano, o que era, de certo modo, mitigado pelo facto de, sendo representante do Brasil na Organização Mundial de Café, tal me permitia vir à Europa com muita frequência, mais ou menos de três em três meses. Circunstância que atenuava as saudades da terra natal, porque nessas escalas nunca deixava de passar por Portugal. E isso contribuiu, de certo modo, para a tal felicidade que referi. Até que achei que era o tempo de regressar e não me arrependo nada. Os meus últimos 32 anos, foram de entrega absoluta a uma missão e, nessa missão, concretizei muitos dos meus sonhos e devo confessar, com alguma imodéstia, que me sinto orgulhoso por aquilo que fiz. De fato, sendo responsável por uma atividade que é socialmente sensível, creio que a minha imagem pública não é a de um “casineiro”, mas de um homem que tem uma convicta formação ética e que soube enquadrar nessa actividade profissional todos os valores de natureza humanística, cultural e social que permitiram superar o preconceito negativo que, até à época, existia em relação aos casinos portugueses.

Como é que o acionista da empresa, Stanley Ho, via esta sua faceta? E como o conheceu?
Conheci-o enquanto advogado. Tinha acabado de regressar a Portugal e, conjuntamente com um outro grande amigo e um excepcional jurista, – infelizmente já falecido – que era o Dr. Miguel Galvão Teles, fomos os dois contactados pelo Dr. Stanley Ho para analisar o processo de aquisição de uma posição minoritária de 42% da Estoril Sol. Interviemos nessa operação e foi aí que começou o meu contacto com Stanley Ho, até que ele veio a adquirir a maioria accionista da empresa. E na decorrência da evolução desses acontecimentos, ele convidou me para a administração da Estoril Sol. A verdade é que não foi completamente pacífica essa minha primeira abordagem com Stanley Ho, até porque, à data, eu representava um outro accionista com quem que ele se tinha associado nesse negócio. Eu tive de tomar, por vezes, diversas posições que não eram coincidentes com a vontade de Stanley Ho. Mas isso, curiosamente, teve o efeito de reforçar a confiança dele em mim, porque demonstrava uma lealdade e um apego a valores e princípios que, aplicados a ele, lhe davam tranquilidade. De modo que foi muito fácil a minha gestão da Estoril Sol com um acionista como Stanley Ho. Ele era um homem inteligente e tão perspicaz que compreendeu, desde o primeiro momento, que a realidade sociológica da China nada tinha a ver com a realidade sociológica de Portugal. E, consequentemente, deu-me carta branca para fazer, em Portugal, a revolução conceptual necessária para que os casinos deixassem de ser “salas de jogos com serviços anexos” e passassem a ser, uma espécie de shopping centres de lazer e cultura’. Isto é, de centros multidisciplinares de atividades culturais, de espectáculos, de arte, de gastronomia, de cultura, de prémios literários, de edições de culto, como a Egoísta, concepção essa em que a área de jogos passava a ser a continuidade de uma atmosfera lúdica que não criava nem o apelo, nem a essência de um vicio de jogo, mas, sim, de uma simples atividade estimulante de adrenalina convertida em manifestação de lúdico prazer.

Mas a primeira abordagem com Stanley Ho não foi pacífica porquê?
Quando Stanley Ho se transformou em acionista desta sociedade, eu representava o sócio dele, um português chamado João Claro, excelente criatura, mas que “tinha mais olhos que barriga”. Isto é, entrou num negócio para o qual não tinha capacidade financeira de satisfazer todos os encargos inerentes a essa atividade. E, por isso, ao fim da terceira prestação correspondente ao pagamento das contrapartidas iniciais do concurso público que se realizou em 1984, ele “deitou a toalha ao chão” e, pura e simplesmente, quis vender a sua posição a Stanley Ho. E Stanley Ho, como todos os empresários chineses – e isto faz parte das características dos negócios na China -, não lhe quis pagar aquilo que seria justo para alguém que já tinha liquidado do seu próprio bolso várias prestações. O que é compreensível, pois sentindo que havia uma posição mais fraca financeiramente por parte do acionista que eu representava, forçou-se um bocadinho a barra. E forçou-se de tal forma que me senti na obrigação de pressioná-lo e, sucessivamente, mandei-lhe vários “metros” de fax. E segundo me diziam alguns dos seus colaboradores mais diretos, esses faxes eram excessivamente frontais e, porventura, incomodativos. A verdade é que a operação acabou por se concretizar, ele adquiriu a posição do seu ex-parceiro no negócio pelo preço justo e adequado, pelo que, ato contínuo, eu pedi-lhe a minha demissão. Ele escreveu-me que os jogos tradicionais nunca teriam uma relevância fundamental nas receitas dos casinos. E, portanto, limitou-se a pedir-me para alargar todo o segmento de máquinas automáticas, o que foi amplamente feito. Reformulei completamente, com o entusiástico apoio de uma dedicada equipa, este casino. Não há pedra sobre pedra no Casino Estoril em relação àquilo que herdámos em 1987. Multiplicámos por quatro os espaços disponíveis, alargámos depois a sua área para o antigo edifício do primitivo casino e criámos esta cercadura em espelho para uniformizar, estética e arquitetonicamente, a globalidade dos dois edifícios. Instalámos o maior parque de máquinas da Europa. E com uma programação cultural muito forte, de exponencial qualidade. Ao longo do meu cargo executivo, tivemos aqui cerca de 200 dos maiores nomes da música mundial, para além de magníficos espectáculos diários, de produção própria, no Salão Preto e Prata.

Há quanto tempo não fala com ele?
A última vez que estive com Stanley Ho foi há cerca de dois anos, em Hong Kong. Fiz questão em estar com ele. Já estava muito doente. Foi um momento particularmente gratificante. Por um lado surpreendente, por outro lado comovente. Recebeu-me em casa de uma das suas filhas. Estava numa cadeira de rodas. Ele tem uma espécie de hospital em casa, com um médico e quatro enfermeiras. Estava de luvas até aos dedos e só os dedos estavam visíveis. O aspeto surpreendente dessa conversa foi a vivacidade da sua memória em relação ao passado e a todo um conjunto de factos que ele próprio evocou com sincera satisfação. O aspeto comovente foi no momento em que, tendo-me sido recomendado para que a nossa conversa não o cansasse e não demorasse mais que dez minutos, e já tendo passado uma hora, busquei um pretexto para pôr termo à conversa e não a prolongar por mais tempo. Num gesto muito sincero de admiração e reverência, peguei-lhe na mão para lhe beijar os dedos. E ele disse-me: “Não Mário, não é assim que me quero despedir de si”. Chamou o médico e as enfermeiras e disse-lhes: “Ponham-me de pé porque quero dar um abraço a este homem por tudo o que ele fez em Portugal em função dos meus desígnios”. Devo confessar que, sendo homem, não me envergonho de dizer que por vezes os olhos se me humedecem, tal como nesse momento ocorreu.

Olhando para este seu percurso, considera-se um homem de sorte?
Eu considero que a sorte não existe. O que existe é a ausência de azar. Mas essa, a ausência de azar, dá um trabalho que as pessoas nem imaginam. É com esse trabalho, é com esse sentido de missão, é com essa permanente perceção – e antecipação de soluções – para tudo o que possa vir a caminho, quer positivo, quer negativo, que se consegue a ausência de azar. Muitos chamam-lhe sorte, eu limito-me a não me queixar – e a justificar – essa ausência do azar.

À entrada para o Casino Lisboa há uma frase que diz “ter talento não é sorte; a sorte é que exige talento”…
Essa é uma frase que está assinada por Stanley Ho e que decorreu de uma conversa que ambos tivemos. É o mesmo princípio: em tudo aquilo que se consegue da vida há, digamos, 20% de inspiração e 80% de transpiração.

Acredita em Deus?
A pergunta é tão simples que fico ligeiramente embaraçado em dar-lhe uma resposta que é mais longa do que seria natural. Eu tenho 73 anos e, à minha volta, vejo uma série de pessoas da minha idade que começam a ficar crentes. E interrogo-me, por vezes, se a ideia de um seguro de vida, não está a ser convertida na prevenção para um seguro de morte. Porque, pelo sim pelo não, à medida que a morte se vai aproximando, não custa nada ser crente… E imaginando que o céu existe mesmo, eis que se valida um seguro de morte… Bom, respondendo seriamente, porque, obviamente, isto foi uma pitada de humor, apesar da seriedade do tema: tenho a convicção de que algo superior e transcendente existe para justificar, já não digo este nosso mundo, mas este extraordinário e incomensurável universo na margem do qual nós somos, apenas, um grão de areia numa praia. Um dia resolvi com a Patrícia Reis fazer uma edição sobre Deus na ‘Egoísta’ e, porventura, escrevi o editorial mais curto da minha vida em que se reflecte a minha premonição de Deus. Tem apenas quatro linhas e ainda me recordo da primeira: “Dizem que Deus não existe, mas eu sinto-O na Sua ausência”.

O Mário nasceu em Arganil…
Mais precisamente numa aldeiazinha que nem sequer vem no mapa e que se chama Sarzedo. Ainda ontem liguei para lá para saber dos incêndios, mas, felizmente, o Sarzedo salvou-se dessa catástrofe.

Teve uma infância feliz?
Sim, tive uma infância feliz. Vi galinhas a pôr ovos, vi a matança do porco, vi como é que se fazem e se fumam os chouriços, e tudo isso é importante para compreendermos a vida e interpretarmos o mundo. Faz-me confusão que as pessoas que nascem nas cidades, nos meios urbanos, não tenham a mínima noção de como é esse “milagre” comida que lhes surge no prato, de qual é a sua história. Por isso, a minha vida no campo, o facto de ter nascido e vivido num meio rural até à minha adolescência, foi um fator muito importante para compreender a vida e a saber apreciar.

Mas nasceu numa família rica…
Não diria rica. Eu nasci num solar no Sarzedo. Era o solar do visconde do Sarzedo. Remotamente, a ascendência de uma nobreza rural e, como quase toda a nobreza rural em Portugal, de riqueza tinha pouco. Por isso eu prefiro dizer que nasci no berço da classe média. Talvez nunca tenha saído dela, mas sinto-me bem onde estou.

A sua família também ficou conhecida por algumas conquistas em termos sociais. A sua avó conseguiu ser a primeira mulher a divorciar-se em Portugal.
É verdade. A minha avó foi a primeira mulher que se divorciou em Portugal, em 1910. A história é esta. O meu bisavô, que era nobre, obrigou a minha avó a casar com um fidalgo de Coimbra que, – não devia dizer isto, – gastava tudo o que tinha no jogo. Nessa época, seria, certamente, em casinos ilegais e clandestinos… A minha avó casou profundamente contrariada e esteve casada durante cinco anos, até que se implantou o regime republicano e, com ele, uma certa laicização dos princípios que regiam a sociedade civil. A minha avó conseguiu de imediato o divórcio do seu casamento religioso, pelo facto de o casamento não ter sido consumado! E o facto de não ter sido consumado ao longo de cinco anos, mostra bem a têmpera dessa senhora, a Dona Máxima, que sempre foi uma inspiradora, em termos de determinação e voluntarismo, na minha vida.

A Dona Máxima voltou a casar depois?
Casou com um plebeu, que era proprietário de bastantes terras. Nós tínhamos um vasto território de terras e o meu avô, Alberto Neves, era um homem de fibra, muito respeitado quer no Sarzedo, quer em Arganil. Era um anticlerical ferrenho. Andava sempre com uma bengala. Acho que deu umas bengaladas nas costas do padre lá da aldeia, porque como os meus avós não eram casados pela Igreja, o pároco recusou-se, num evento pascal, a visitar a casa… Era uma pessoa de forte temperamento e deixou uma memória muito viva que, aliás, está retratada no nome de uma das principais ruas do Sarzedo que vai desembocar no solar da família e se chama Rua Alberto Neves.

Gostava que nos falasse de uma pessoa que o tenha marcado pela positiva e de outra que o tenha desiludido.
Você fez-me uma pergunta complexa. É evidente que eu sei quem é que me marcou pela negativa, mas, quem quer que seja, não lhe quero dar o privilégio de saber que eu o sei. Em relação às pessoas que me marcaram pela positiva, foram aquelas em que eu descortinei regras éticas, regras de solidariedade, regras de lealdade e sobretudo, uma regra fundamental que sempre me inspirou ao longo da minha vida, que é a de, em momentos de “travessia do deserto”, as pessoas manterem e reforçarem a sua solidariedade, Sensibiliza-me, especialmente, quando alguém deixa o pedestal do poder, que essas pessoas só reforcem ainda mais a sua aproximação, o seu aconchego, a sua preocupação, acompanhamento e entrega. Felizmente ainda não tive que fazer nenhuma “travessia do deserto”, mas o facto de me ter desfeito das minhas funções executivas, embora continue presidente da Estoril-Sol, foi interpretado por algumas pessoas como algo que seria de certo modo traumático para alguém que vive para trabalhar, que vive para realizar e que vive para encontrar na vida não apenas uma missão mas um desafio incessante. E eu sou esse alguém que considera que tudo o que está bem é porque está obsoleto! Há pessoas que me telefonam permanentemente, às vezes às 2 e 3 da manhã – olhe, por exemplo, o Carlos do Carmo liga-me às 3 e 4 da manhã quase todas as semanas, só para conversarmos. No fundo, ele não me pergunta como estou, nem eu lhe pergunto como ele está. Falamos sobre a vida, fazemos os nossos desabafos – e quando digo o Carlos do Carmo, digo todo um vasto conjunto de amigos que me gratificam, nesta altura da vida, com o inestimável valor da amizade. Por isso, considero que a amizade é o único lugar do mundo onde vale a pena viver!

As pessoas não são perfeitas…
Não são perfeitas, de facto. Já encontrei pessoas que pensam que são as melhores do mundo e isso não existe. A não ser no desporto e nas olimpíadas. Agora, há algo fundamental que as pessoas devem assimilar: nestes sete mil milhões de habitantes que preenchem o nosso universo terrestre, cada um tem uma raiz cromossomática completamente única e individualizada, incomparável com mais nenhum dos outros sete mil milhões de seres humanos. E sendo assim, qual é a maneira de encontrar uma via de realização pessoal? É aperfeiçoando esse código cromossomático que é único e singular, procurando potenciar o valor da diferença. Pois que a diferença, na valoração subjectiva do destinatário de qualquer ação ou obra, é interpretada como qualidade. E, curiosamente, sendo interpretado como qualidade, tende, por vezes, a distorcer a realidade, fazendo com que o autor da diferença acabe por parecer melhor que os demais. Nem sempre é verdade. Mas é verdade que, através dessa vertente diferencial, se consegue ganhar o estilo e, sobretudo para quem escreve, o estilo é a poesia da prosa…

Também escreve muito… muitas cartas, muitos artigos?
Alguns artigos e, sobretudo, muitas cartas. Mando-as aqui, para o Casino Estoril e daqui, do Casino Estoril, respondo-as para minha casa e conversamos os dois…

O que diz nessas conversas consigo?
Discutimos a vida, os valores, os princípios, escolhemos temas. A dualidade entre o que se gosta e o que não se gosta na vida, o que se admira e o que se abomina. São cartas que eu me escrevo e que respondo a mim próprio. Sou um aprendiz da vida e, por isso, um leitor. Não tanto como gostaria ou como lia na minha juventude. Mas aquilo que tenho tempo para ler dá-me espaço, dá-me estímulo para pensar e para refletir. Não querendo assumir um ar pomposo, escrevo pensamentos e reflexões que podem servir, ou não, para um dia publicar.

É daqueles que acham que não vale a pena ser pessimista?
Quando se é, como eu, um otimista pragmático versus um pessimista derrotista, os resultados tendem a ser exatamente iguais. A única diferença é que o otimista vive mais feliz até os alcançar. Porém, quando é excessivo esse pessimismo derrotista, fica difícil que o pessimista consiga os mesmos resultados que o optimista. Porque, repare, um pessimista em cada solução sempre encontra um problema. Já um otimista é aquele que, num problema sempre encontra a solução. E isso influencia o resultado final. Eu sou um otimista pragmático e realista. Acredito sempre que há uma saída. O único problema que não tem saída é a morte. Pois que nascemos condenados à morte. Digo, por vezes, que a vida é um prémio, a morte é o seu preço. E eu quero pagá-lo a pronto e não a prestações!

É algo em que pensa, a morte?
Todos os dias. Mas sem medo. Medo, só do destino: e a prece que formulo é que a dignidade da vida seja coincidente com o seu termo!

A música sempre esteve presente na sua vida.
Na minha juventude fui músico enquanto estudava, quer no liceu, quer depois na Faculdade de Direito, e tinha um conjunto – o Quinteto Académico – que me fez compreender as idiossincrasias dos artistas. Trato-os como pessoas absolutamente comuns porque consigo assimilar tudo aquilo que há neles de diferente sem me chocar ou autoviolentar. Para mim foi muito fácil, enquanto gestor de Casinos, criar relações que são duradouras com alguns desses artistas internacionais, como é o caso de Tony Bennett, Roberto Carlos ou Fafá de Belém.

O Quinteto Académico foi marcante?
Extremamente marcante! Tivemos, ao longo dos sete anos do Quinteto Académico, 32 músicos. Eu não era propriamente um “rouxinol da noite” apesar de cantar e “tentar” tocar guitarra eléctrica. Sempre tive uma noção muito rigorosa de qualidade musical. Por isso, cedo compreendi que jamais podia ser um bom músico mas podia ser um excelente crítico e “seleccionador” de músicos. E foi a partir daí que tomei a decisão de ficar empresário do grupo a e nele buscar um percurso de constante valorização. Primeiro com músicos portugueses, depois com músicos de todas nacionalidade que eu fui buscar aos Estados Unidos, à Bélgica e a Inglaterra. Cheguei a ir buscar de helicóptero um vocalista a uma plataforma de exploração petróleo abandonada no Mar do Norte, onde estava instalada uma rádio pirata, a “Radio Caroline”. Tive uma adolescência em que conciliava o estudo rigoroso do Direito – nunca chumbei e tinha razoáveis notas – com uma vida de boémia que decorria do Quinteto Académico e da frequência dos bastidores artísticos.

Ainda passou pelas Finanças como chefe de gabinete. Como foi essa experiência?
Formei-me [em Direito pela Universidade Clássica] e não cheguei a ter férias. Diria que me formei e, no dia seguinte, entrei no Ministério das Finanças, para o Centro de Estudos Fiscais. Estive lá seis meses durante os quais tive oportunidade de dar um conjunto de pareceres publicados no Boletim de Ciência e Técnica Fiscal. E isso terá sido visto ou lido pelo Ministro das Finanças e pelo Secretário de Estado do Orçamento. Porventura, encontraram algum mérito nesses meus escritos e foi assim que me convidaram para chefe de gabinete. Convite esse que condicionei ao facto de não ser designado em termos formais mas, sim, em comissão de serviço e lá estive durante o mandato de Marcello Caetano até que chegou o 25 de Abril e eu fui o único chefe de gabinete que não fui “defenestrado”. Talvez porque as pessoas sabiam qual era a minha posição em relação ao regime de então. E mais do que isso: fui convidado para intervir e ser um dos dois membros responsáveis, conjuntamente com o então presidente do Banco de Fomento, no lançamento da primeira emissão do empréstimo público pós revolucionário que se designou por Títulos do Tesouro para a Reconstrução Nacional.

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