Mário Soares foi um político da era da televisão, o grande mass medium, que soube utilizar com mestria e eficácia. Em 1981, convenci-o a aceitar o convite que lhe fiz em nome da RTP, então dirigida por Daniel Proença de Carvalho, para um depoimento para o documentário evocativo da vida de Francisco Sá Carneiro, um ano após a sua morte, e dirigido por Victor Cunha Rego (1933-2000). Mário Soares recusou falar apenas um minuto, queria cinco, negociámos e ficou em três.

Talvez como nenhum outro político, Mário Soares conhecia a intimidade proporcionada pela televisão e no poder emocional do meio. A TV adequava-se bem à sua bonomia e à-vontade, àquela maneira de ser a que chamo “estilo natural”, que era exatamente o seu, e que o slogan “Soares é fixe” resumia com acuidade. Em 1995, na mensagem de despedida ao país transmitida na televisão, após dez anos como Presidente da República, Mário Soares sublinhou a “cumplicidade afetiva” que se estabelecera entre ele e os portugueses, em cujo desenvolvimento a televisão tivera um papel chave, em particular durante as presidências abertas.

É curioso recordar que, em dezembro do mesmo ano, Marcelo Rebelo de Sousa reconhecia na TSF a importância do politicamente emotivo quando refere a quebra do “laço afetivo” entre o candidato Cavaco Silva e parte do seu eleitorado, na campanha que o opôs a Jorge Sampaio – que viria a ser um presidente afetivo, sempre preparado para deixar cair uma lágrima presidencial. Marcelo sugeriu que o afeto desempenha um papel de primeira importância para a conquista de votos que permitem ganhar eleições. Vinte anos depois aplicou a si mesmo com sucesso a receita apurada ao longo de outros tantos anos na rádio e na TV.

Falei com Mário Soares pela primeira vez, talvez em 1976, na sede do PS antes de se mudar para o Largo do Rato. Apoiei-o na Fonte Luminosa, no República e em tantas outras ocasiões na luta pela liberdade, pela democracia e pela Europa. Mais tarde, fiz parte do governo do Bloco Central, de que Mário Soares foi primeiro-ministro, como adjunto do ministro do PSD, Álvaro Barreto.

O debate televisivo de Mário Soares com Álvaro Cunhal em novembro de 1975 fora importantíssimo para o afirmar perante os portugueses como o líder dos democratas e dos europeístas. Foi também uma experiência de comunicação ímpar para a futura campanha presidencial contra Diogo Freitas do Amaral, um candidato ainda pouco conhecido, em 1985/86. Como fez notar Victor Cunha Rego, a campanha eleitoral para a presidência da República de 1985/86 ocorreu no estertor da Guerra Fria, um ano antes do Presidente Ronald Reagan ter dito “Mr. Gorbachev, tear down this wall!”

Naquele tempo, só existia a RTP e os tempos de antena tinham grande importância e duração. No total das duas voltas, as campanhas dos candidatos Mário Soares e Freitas do Amaral somaram sete horas de produção e de emissão de televisão. E Mário Soares contou com uma equipa de profissionais de cinema e televisão do melhor que se podia ter: António Pedro Vasconcelos, Nuno Teixeira, Mário Barroso.

Foi uma campanha que Mário Soares classificou de “muito dura” – diria eu, para ambos os candidatos. Fui o responsável pela campanha de televisão de Freitas do Amaral com uma equipa que incluía Thilo Krassman (1933-2004), Jorge Alves da Silva, Nicolau Breyner (1940-2016) e Maria Elisa. Era também um elenco poderoso mobilizado pelo diretor político da campanha, Daniel Proença de Carvalho.

No livro “Televisão Política – os segredos da campanha de televisão Freitas do Amaral ‘86” (Círculo de Leitores), publicado dez anos depois, descrevo com didatismo teórico-prático e em contexto analítico aquela campanha de televisão, assim como o debate final entre os dois candidatos. Revelo, por exemplo, como a técnica utilizada por Mário Soares foi mais tarde copiada com grande rigor e sucesso pelo candidato Jorge Sampaio no confronto na televisão com Cavaco Silva.

Apliquei a receita emocional à campanha de Freitas do Amaral. Fui acusado, por exemplo por Miguel Sousa Tavares, de ter exacerbado o emocional sobre o racional. Na verdade, a campanha de Mário Soares foi muitíssimo mais emocional. Recordo apenas o episódio da agressão na Marinha Grande (violência é uma das coisas que funciona bem em TV) e o apelo comunista “fechem os olhos” e votem em Soares (a situação era tão dramática que até o antigo inimigo se rendia).

Ao contrário do que se pensa, na minha opinião, Mário Soares sabia que a possibilidade de ganhar era maior do que a de perder. A História favorecia Soares e desfavorecia Freitas. O historiador António José Saraiva, dotado de uma perspetiva histórica sobre a maneira de ser dos portugueses, disse-me que não acreditava na vitória de Freitas do Amaral. Estudos de opinião realizados pela RTP, que apenas Mário Soares conhecia – e que descobri depois das eleições, revelavam que caso houvesse segunda volta, como houve – apontavam para uma vitória de Soares por larga margem, o que não veio a ocorrer. O resultado (140 mil votos de diferença) foi muito apertado.

Dez anos depois, Freitas do Amaral recorda no meu livro a regra de ouro das campanhas eleitorais nos EUA: ganha o candidato que mostra mais veemência em querer ganhar. Disse-me Freitas do Amaral: “Eu não perdi intelectualmente o debate na televisão, mas para Mário Soares, mais velho do que eu e com um currículo de trinta anos de luta antifascista, aquela era a sua última oportunidade. Ele precisava absolutamente de ganhar, e isso transpareceu no debate.” Na verdade, Mário Soares esteve melhor – mas aquela seria também a última oportunidade para Freitas do Amaral.

Carisma e Mário Soares eram sinónimos. Era possuidor do dom da comunicação, um dom que se transmite não só pela oratória e pelo tom de voz, mas também pelo corpo: é a arte de representar. “Em última análise, uma pessoa que representa um papel muito próximo do que é na realidade – e que representa confortavelmente esse papel – irá sair-se bem no teatro político”, disse o ator e realizador Warren Beatty sobre Ronald Reagan. Mário Soares tinha as qualidades de ator, que completava com a habilidade para o improviso. Teve sorte, porque a atriz Maria Barroso, sua mulher, não terá sido a menor das inspirações. “A noite da derrota do PS nas legislativas tinha-me dado imensa vontade de lutar. Disse ao meu marido: não desistas”, contou a Leonor Xavier na biografia que dela escreveu.

O discurso humanista de Mário Soares, feito de “frases célebres”, era de agrado imediato: “A cultura faz-se contra o poder”; “A cultura é como o sal da democracia”. A sua pose misturava naturalidade com uma certa arrogância. Contrastava claramente com a de Freitas do Amaral, distante e de certo modo hirto, mais de acordo com um cânone cada vez menos usual, em que se convencionou que o corpo deve servir de suporte à voz e não deve perturbar a clareza de expressão.

Não podemos esquecer que, no momento em que se percebia que a União Soviética estava em derrocada, a gota de água que deu a vitória a Soares naquela eleição foi o apelo ao voto do PCP, que ele tão corajosamente enfrentara e que, naquele momento, ao aceitar o seu apoio, recuperava como par do Estado democrático – o Estado liberal e de direito que dez anos antes os comunistas haviam querido impedir e derrubar. Por isso se pode dizer com razão de facto que todos os portugueses, mesmo aqueles que quiseram impedir a liberdade e a democracia após o 25 de abril de 1974, devem à coragem e determinação de Mário Soares a possibilidade que hoje têm de viver num país livre e democrático.

P.S. Grande abraço para o João e a Isabel.