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Martim Moniz: À volta do mundo numa praça que não para de dar voltas

A empresa Moonbrigade pretende dar continuidade ao conceito do “Mercado de Fusão” iniciado em 2012. As obras de requalificação terão um investimento de três milhões de euros e pretendem criar mais de 250 empregos. Do outro lado, associações de moradores exigem a suspensão das obras e mais espaços verdes. A Assembleia Municipal de Lisboa aprovou recentemente uma proposta para que o projeto de requalificação da Praça do Martim Moniz seja submetido a um período de discussão pública.
2 Março 2019, 08h00

A Praça do Martim Moniz está com duas caras: de um lado turistas chineses, brasileiros e italianos tiram fotografias e ouvem as explicações dos guias sobre a história da cidade. As aventuras de D. Afonso Henriques na  conquista de Lisboa aos muçulmanos mistura-se com o som dos martelos e das máquinas de construção – o objetivo da empresa Moonbrigade é dar continuidade ao conceito do “Mercado de Fusão” iniciado em 2012.

No quiosque de informações outros visitantes aproximam-se. São cerca de 20 a 30 por dia, durante o inverno, explica uma funcionária: tanto querem saber onde podem apanhar o elétrico 28 como procuram mais informação sobre a praça que pisam. Do alto da esplanada do restaurante chinês Hua Ta Li,  com vista sobre a Praça, veem-se os empregados de colete fluorescente, as máquinas retroescavadoras ou pequenos arbustos a serem plantados.

O debate em torno da construção tem sido polémico. Já houve um cordão humano na praça em protesto contra o projeto. E, em resposta, realizou-se um encontro “com artistas e amigos da praça” promovido pela Moonbrigade, empresa responsável pela obra. “A oferta comercial será bastante diversificada. Pretendemos criar um espaço com ambiente de mercado e conceitos que se complementam. Teremos propostas gastronómicas orientadas para a comida do mundo, assim como lojas de roupa, artigos vintage, uma chapelaria, um cabeleireiro, uma padaria com tipos de pão de todo o mundo, lojas de discos, tatuagens, entre outras ofertas. No fundo, lojas que fazem sentido dentro de uma lógica de comércio local. Vamos criar mais de 250 empregos e muitos deles serão, esperamos nós, de pessoas do bairro”, explica José Filipe Rebelo Pinto, sócio da empresa Moonbrigade, ao Jornal Económico.

Inês Andrade, presidente da Associação Renovar a Mouraria, e diretora do jornal “Rosa Maria”, tem outra visão. “Estamos a preparar um dossiê para enviar à Câmara Municipal de Lisboa, com opiniões de especialistas, arquitetos e outras pessoas que tragam contributos interessantes”. No dia 2 de fevereiro marcaram presença no protesto o Grupo Gente Nova, a coletividade do bairro, o Grupo de Moradores da Rua dos Lagares e o Movimento Morar em Lisboa, além da comunidade local, moradores e trabalhadores da zona. “Tem de ser feita uma discussão participada e com a definição das linhas orientadoras, para depois se promover um concurso de ideias com o que as pessoas querem”, acrescenta a responsável.

Do outro lado da barricada está a empresa Moonbrigade. “Pretendemos dar continuidade e levar mais longe o conceito do ‘Mercado de Fusão’ iniciado em 2012 que, como acho que é reconhecido, deu uma nova vida, uma vida melhor, a esta parte do bairro. O Mercado Martim Moniz mantém o mesmo espírito: um mercado que reflete o contexto cultural e social da zona, certamente a mais diversificada, cosmopolita se quiser, de Lisboa e talvez até do país. É, contudo, um projeto mais bem estruturado e que foi arquitetonicamente desenvolvido em harmonia com a envolvente urbana, fazendo dele um prolongamento do espaço que o rodeia”, conta José Filipe Rebelo Pinto, sócio da empresa.

Esta nova área da concessão representa uma redução de 44% relativamente à anterior. As zonas não ocupadas pela concessão, tanto a norte como a sul, terão uma área superior a seis mil metros quadrados nos topos. “É nessa área que nos propomos criar um parque infantil, um desejo dos moradores, e onde continuaremos a apoiar todas as manifestações culturais e desportivas das comunidades locais, desde logo a prática do críquete e as diversas celebrações que aí costumam ter lugar”, destaca José Pinto. A requalificação da praça do Martim Moniz terá um investimento de três milhões de euros e as obras deverão terminar no verão, segundo um representante do concessionário.

Inês Andrade, da Associação Renovar a Mouraria, contrapõe: “Hoje em dia as pessoas estão exaustas. Eles querem pôr eventos de música, arte urbana e DJ. Excluem a participação e o usufruto da praça pela comunidade”.

Para o sócio da empresa Moonbrigade, a integração da oferta comercial com o espaço envolvente está garantida. “É uma integração que já foi conseguida pelo ‘Mercado de Fusão’ e que o Mercado Martim Moniz pretende aprofundar. Estamos a falar de um conceito que não faria sentido sem as comunidades locais, que foi pensado precisamente para aquela praça e por ali existir a diversidade de que já falei. Essa caraterística está presente tanto na oferta comercial do mercado como na dinâmica de eventos à qual pretendemos dar continuidade, como a celebração das datas festivas das diferentes comunidades presentes no bairro. Esse é um dos principais traços identitários da Praça do Martim Moniz e, da nossa parte, assim continuará a ser. E temos constatado que os moradores e os comerciantes locais são muito sensíveis a isto. Ainda bem”. O novo mercado contará com uma peça do artista português Bordalo II, bem como do brasileiro Kobra, sendo que esta última representará “a união dos povos”, numa alusão à multiculturalidade da zona. Em 2017, Lisboa recebeu o primeiro mural de Kobra em Portugal, o retrato do cacique Raoni, numa empena de um prédio de Marvila, uma intervenção artística que alerta para a situação das populações indígenas no Brasil e no mundo.

Da coragem do cavaleiro à proposta da AML

A tradição conta-nos que Martim Moniz era um dos cavaleiros de D. Afonso Henriques que, em 1147, na conquista de Lisboa, se atravessou numa porta da muralha do Castelo dos Mouros, impedindo o seu fecho e, sendo de imediato morto pelos sitiados garantiu mesmo assim a abertura necessária para a entrada dos exércitos cristãos, que viriam a conquistar a cidade.

Certo é que Lisboa foi conquistada por D. Afonso Henriques aos muçulmanos, com a ajuda de cavaleiros estrangeiros, no dia 21 de outubro de 1147. A cidade cedeu a um cerco que havia começado a 1 de julho daquele ano.

Ainda hoje se discute a veracidade total desta história, mas a verdade é que a bravura de Martim Moniz valeu-lhe um busto, uma estação de metropolitano e até uma praça. Um pouco abandonada ao longo das últimas décadas, ganhou nova vida com a construção dos centros comerciais da Mouraria e do Martim Moniz, no final dos anos 80 e início de 90. Foi nesta altura que se arrancou com uma restruturação do local, que contou com pavimentos desenhados por Eduardo Nery, jardins, fontes e vários espaços comerciais. Este mês deu-se uma nova volta na praça mais multicultural de Lisboa. No dia 5 de fevereiro, a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) aprovou, por unanimidade, uma proposta para que o projeto de requalificação da praça do Martim Moniz seja submetido a um período de discussão pública, antes de ser apreciado em reunião do executivo.

A proposta apresentada pelo CDS-PP, no âmbito de um debate de atualidade sobre o projeto de requalificação da praça do Martim Moniz, realizado a pedido do PCP, solicita ainda “a ampla divulgação dos projetos públicos e privados para o local, para efetivo escrutínio da população”, assim como a realização de uma audição, na AML, destinada a discutir este processo.

Em resposta, o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina (PS), demonstrou-se disponível para participar no “debate que a assembleia municipal entenda promover sobre esta matéria”. A AML, através da proposta dos centristas, pede também ao município a disponibilização de uma série de documentos que considera serem necessários “para clarificação dos procedimentos e projetos existentes”.

“Claro que considero positivo tudo o que contribua para o esclarecimento do projeto em todas as suas vertentes. Intervir num espaço público significa manter este diálogo, mesmo que, por vezes, a desinformação impeça a mensagem de chegar corretamente ao destino. Há pessoas que se manifestaram contra o projeto e que claramente não o conheciam. Não conheciam o facto de estarmos perante uma menor ocupação da praça, não conheciam a ligação deste projecto ao anterior e por aí fora. Esta é a nossa missão no curto prazo: fazer passar a nossa mensagem, dar a conhecer os factos que possam fundamentar opiniões e aí respeitaremos todas. Estamos envolvidos num processo de contestação que, sendo legítima, assenta em questões que nos ultrapassam, mas gostava que nos ouvissem e que conhecessem o projeto antes de definirem se estão contra ou se são a favor. E é certo que temos o apoio das comunidades locais, de  algumas associações locais, de moradores e comerciantes. Temos mais vozes a favor que vozes contra e isto tem de ser dito”, afirma José Filipe Rebelo Pinto, sócio da Moonbrigade, ao Jornal Económico.

Citado pela agência Lusa, e intervindo na sessão da AML, o eleito do PCP Modesto Navarro defendeu que a câmara “deverá suspender de imediato a obra” em curso, proposta que foi recusada pela AML.

Ricardo Moreira, do BE, sublinhou que as pessoas pediram um jardim para a praça, que “deve estar aberta ao público permanentemente”, sem “muros nem vedações”, acrescentando que “a câmara avançou com um projeto sem consultar a população”.

Por seu turno, o deputado municipal do PSD Francisco Domingues destacou que a zona do Martim Moniz “já tem excesso de zonas comerciais e pressão turística”, defendendo que a praça devia dar lugar a “um pulmão verde aberto 24 horas”, tendo Inês Sousa Real (PAN) salientado que Lisboa “não é um parque de diversões” destinado aos turistas. Diogo Moura, do CDS-PP, disse que “é normal que as pessoas entendam que os contentores sejam agressivos”, notando a “falta de documentação” relativa ao processo.

Também a eleita do PEV Cláudia Madeira pediu que seja iniciado um “processo aberto e participado”, ao contrário do que tem acontecido até agora, o que na sua ótica é “inaceitável e pouco transparente”. “As pessoas pedem jardins e a câmara dá-lhes contentores”, criticou o PEV. Aline Beuvink, do PPM, reforçou ainda que “o Martim Moniz precisa de ser urgentemente repensado”.

“Os contentores são apenas uma base de trabalho. Na realidade, são estruturas flexíveis que permitem uma adaptação fácil aos mais variados tipos de soluções, empregando materiais nobres de revestimento que poderão ir da madeira ao vidro. O resultado final terá qualidade e lembrará tudo menos um contentor.  Recordo ainda que esta solução é usada pelo mundo fora em mercados semelhantes, de Londres a Madrid. A insistência na palavra contentor, como se fosse uma solução menor, é injusta. Acontece que este será o mercado das pessoas e das ideias; pessoas e ideias que vão ser acolhidas em espaços bem concebidos, bem desenhados e bem pensados. Haverá mesas e cadeiras, bancos e recantos onde todos poderão estar sem consumir, como é próprio de um local público. Sabemos que este é outro dos pontos importantes para os moradores e, obviamente, concordamos que assim seja”, defende José Filipe Rebelo Pinto. Já Inês Andrade, da Associação Renovar a Mouraria, acredita que ainda é “possível reverter” o projeto em curso.

Indiferentes a estas polémicas, dezenas de turistas vão tirando fotografias no local onde se cruza o maior número de etnias da cidade.

Artigo publicado na edição nº1976 de 15 de fevereiro, do Jornal Económico

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