“A democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros” – Winston Churchill
E eis que se cumpriram esta semana 50 anos sobre o evento de maior simbolismo civilizacional da história recente de Portugal. O 25 de Abril e a maturidade societária adquirida para aquilo que é hoje o nosso país é um marco de inegável valor acrescentado para todos, e que permitiu que Portugal entrasse numa primeira linha dos países mais desenvolvidos no mundo, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento humano, económico e das aspirações dos indivíduos.
Graças às conquistas da revolução, consolidadas após o 25 de novembro, das primeiras reformas e posterior entrada na então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, Portugal tornou-se um lugar substancialmente melhor para viver, com melhor acesso à educação, cuidados de saúde, com melhor coesão social e menores desigualdades, acesso à inovação, ao comércio internacional e consequente maior riqueza económica. Mas a democracia é uma casa inacabada, e que necessita de ser cuidada e adaptada às realidades e necessidades de cada era. E se o meio século de democracia nos deve deixar gratos por tudo aquilo que permitiu que os portugueses tivessem acesso, também nos deve abrir a porta para uma reflexão séria sobre o que podemos fazer para renovar os votos com o espírito de Abril.
Reconstruir a esperança e ambições para os portugueses
O tópico não é novo. Existem feridas abertas no que diz respeito às expectativas de qualidade de vida dos cidadãos, e à forma como podem melhorar a sua posição social ao longo da mesma. Durante muitos anos, os portugueses sentem que vivem estagnados, seja economicamente, seja nas oportunidades e capitalização das suas ambições.
A convergência do nível de vida nacional com a média europeia tem sido lenta, e desde 1995 Portugal caiu em termos de PIB per capita, de 16.º para 20.º entre os 27 países da União Europeia. Os portugueses trabalham mais horas, ganham pior e vivem num país com maior desigualdade que a média europeia, de acordo com os dados publicados pelo Banco de Portugal no mês de março.
Ao mesmo tempo, existe um elevado nível de tributação fiscal, assim como uma degradação dos serviços públicos da saúde ou educação – que são visíveis no facto de cada vez mais portugueses procurarem alternativas nos operadores privados destas áreas – criando, assim, um crescente desconforto face à disponibilidade para pagarem impostos elevados por serviços que consideram inadequados. Isto reflete-se também na forma como votam, e cada vez existe um maior sentimento antissistema e eurocético em Portugal (visível nas últimas legislativas), e que é também de certa forma a face visível do cansaço relativamente às soluções dos partidos do centro político, que falharam nos últimos anos em moralizar e reformar o país.
Ou seja, é necessário construir um novo contrato social e implementar medidas indutoras de crescimento que possam devolver esperança e restaurar maior coesão social no país, que é absolutamente vital para uma década que deverá ser marcada por forte inovação digital e automação industrial, e que deverão inevitavelmente – pelo menos durante algum tempo – influenciar o mercado de trabalho, rendimentos, e induzir desigualdade.
Tal como é necessário criar mecanismos para suavizar estes impactes da inovação, criar medidas e economia que permitam dinamizar o elevador social e aumentar a transparência das instituições, e combater as desigualdades de género nos rendimentos. Estes são alguns caminhos que podem ser de enorme importância para selar um acordo mais justo com os cidadãos.
Portugal deve refletir e ter a sua própria estratégia como país
As crescentes tensões sociais e desafios que se colocam atualmente à Europa não podem continuar a ser ignorados. O regresso dos conflitos militares no continente europeu, a persistência das assimetrias económicas entre países da periferia e centro europeu em contexto de inflação, exigem que Portugal repense e se adapte às novas circunstâncias.
Uma coisa parece certa. Viver apenas e exclusivamente da estratégia construída em Bruxelas, e dependente dos fundos ou planos estruturais, é curto e pode ser perigoso face às alterações geopolíticas que podem ocorrer nos próximos anos – sobretudo como consequência do que está a acontecer atualmente na Ucrânia e do que tal pode causar em termos de reposicionamento estrutural da União Europeia.
Atualmente, não existe um projeto estratégico para Portugal que não seja produzido em Bruxelas. E será justo dizer que também não temos tido estratégia própria para nos tornarmos um parceiro valioso para a Europa, em vez de sermos apenas um Estado-membro que se eterniza no processo de ajustamento e nos fundos estruturais. Um papel algo reduzido, e pouco ambicioso, se tivermos em consideração que somos um país com dimensão cultural e diplomática global.
Deve procurar, por isso, voltar a ser um país com propósito globalista e que sabe o que quer ser a cinco e a dez anos, trabalhando com a Europa, é certo, mas com a sua agenda própria, apostando na sua identidade cultural junto das nações onde detém relações culturais e históricas – como África, América do Sul, ou Ásia via Macau –, como fator diferenciador para crescer e criar mais oportunidades para os portugueses se valorizarem.
A agenda da União Europeia e do Ocidente é relevante, mas recuperar e reconstruir a relação comercial com a diáspora, com o mundo português, é essencial para o projeto da democracia portuguesa. Porque devolverá dimensão geopolítica e oportunidades para que o país possa também crescer e ter um papel mais significante junto dos seus parceiros europeus.
Maturidade política é crucial para reduzir polarização e implementar reformas
Importa ainda operar uma mudança de mentalidade na forma como os partidos, sobretudo os do centro político se relacionam. Numa primeira linha, é da maior importância que se crie caminho para reduzir a polarização política vigente, que apenas beneficia o sentimento de desconfiança relativamente aos partidos europeístas e moderados, que são os que, no final do dia, mais têm feito para que, hoje, Portugal seja um país moderno e melhor para viver do que antes de 1974.
Criar e desenvolver uma cultura de ética parlamentar e de relação partidária pode ajudar a restaurar a confiança nas instituições e representantes dos partidos, que devem também tomar iniciativas de se abrirem mais à sociedade civil, e envolver o cidadão comum no processo de eleitoral. Ou seja, promover uma cultura e reforma que dê um sinal sólido de maturidade numa altura em que Portugal atinge os 50 anos de democracia.
Existem, à cabeça, duas frentes que devem e podem ser um bom princípio para uma espécie de iniciativa de maturidade democrática. A primeira é a constatação de que a dispersão de representação parlamentar é hoje muito mais complexa, porque existem mais partidos. Doravante, será sempre mais difícil encontrar total coesão nas soluções governativas e, por isso mesmo, não podemos estar permanentemente em eleições, ou em situação de bloqueio parlamentar. Ou seja, é preciso que o centro político seja responsável e deixe governar quem venceu.
E isto leva à segunda frente. É preciso criar estabilidade legislativa. O país não pode estar a tentar adivinhar se um governo dura seis meses, um ano ou com sorte, dois. Os governos devem poder cumprir o seu mandato completo por regra, mesmo que não tenham maioria parlamentar. Afinal, Portugal não pode, 50 anos depois, andar para trás e deixar-se condicionar e voltar aos tempos quentes do PREC – Período Revolucionário em Curso, que marcaram o final da década de 70, sob pena de termos uma real crise de regime sem solução e capturado pela agenda de curto prazo dos partidos, ao invés do interesse maior de Portugal e dos portugueses.
‘Bottoms’ up’: 50 anos depois, reformar Abril para um país mais coeso e com futuro
Os 50 anos da democracia são uma recordação de conquistas societárias para Portugal e, em quase todos os aspetos, positivas seja do ponto de vista humano e social como económico. Mas é, também, perceber que a democracia é um corpo vivo, que não pode correr o risco de se tornar percebido como um sistema obsoleto e incapaz de lidar com os desafios do presente.
Urge, por isso, promover a dinamização da economia para os novos vetores de crescimento, ligados à revolução digital ou à descarbonização, porque tudo isso é indutor de valor acrescentado, que permitirá melhorar a vida das pessoas e aumentar a coesão social. Bem como criar um novo pacto que permita unir os portugueses em torno de uma agenda para o país – mais autónoma e menos dependente dos fundos de apoio europeus – e vincada por maior responsabilidade, iniciativa e transparência.
Este é o melhor caminho para defender a democracia e a melhor forma de homenagear o espírito de Abril nos próximos 50 anos, e de tornar novamente evidente aquilo que apenas os mais antigos hoje ainda sabem. Que qualquer alternativa à Democracia é um tenebroso retrocesso civilizacional para os portugueses.