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Memórias assombradas

São os vivos que se batem já contra o colonialismo e pelas independências que a partir de 1953 não deixam esquecer os mortos de Batepá. São eles que mantêm como assombração essa memória, presente já não só nos seus coevos, mas nos filhos e netos destes.
8 Outubro 2018, 15h33

Quando a Inês Nascimento Rodrigues me convidou para apresentar o livro “Espectros de Batepá – Memórias e narrativas do Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe” (Afrontamento, 2018), fiquei muito assustada. Sim, admito saber alguma coisa sobre Batepá e interessar-me por silêncios que pesam sobre o nosso passado colonial. Mas embora há muito me interesse por histórias que a memória oficial portuguesa sepultou, espectros, fantasmas, fantasmagorias e outras zálimas não são, definitivamente, uma das minhas especialidades. Pelo contrário: passei anos a recusar essas interpretações – na minha infância, bastante comuns – de factos que me pareciam racionalmente explicáveis. E na abertura do Manifesto Comunista li a referência espectral como uma crítica cáustica ao obscurantismo dessa Europa assombrada.

Era, pois, óbvio, que não era uma boa escolha para apresentar um livro chamado “Espectros de Batepá”. A Inês Nascimento Rodrigues tranquilizou-me: “Não tens que falar de fantasmas.” Não, claro que não, podia limitar-me a falar de Batepá. Mas alguns fantasmas começaram a entrar aos poucos pela porta que ela entreabrira. Era a voz do senhor Carlos a perguntar-me baixinho: “Não ouviu eles a atirarem-nos areia?” “Eles quem, senhor Carlos?” “Eles, os que morreram aqui, perto da ponte!” Não, não tinha ouvido a areia, mas ele sim, e quando, a somar-se a isso, viu atravessar-se na estrada entre Baucau e Díli um imenso gato preto (que eu, sentada ao lado, não vislumbrei) só o muito respeito pelo katuas (o nome timorense para “mais-velho”) que levava no carro o impediu de parar.

Pobre de mim, tão europeia apesar de africana, tão falha de imaginação. Não senti a areia, não vi o gato, não vi sequer a procissão que, segundo a minha anfitriã timorense, todas as noites entrava na casa onde ficara e onde houvera um massacre, perturbando o guarda que dormia à porta. Desdenhei quando me disseram que Xanana tinha o poder de se transformar em mosquito – ou que o homem que conhecia como tal não era o verdadeiro, e que esse vagueava, feito espectro, no Matebian (sim, não é só em São Tomé que vagueiam espectros). Duvidei quando Taur Matan Ruak nos disse que, por vezes, havia guerrilheiros que eram mortos pelas balas dos indonésios – e depois apareciam, vivos, no local de acampamento. “Não podíamos era dizer que tinham morrido. Não podíamos falar de morte.” Sorrimos, o que o ofendeu. Chamou então um militar e disse-lhe: “Estes senhores não acreditam no que te aconteceu. Levanta a tua camisola para eles verem!” O militar obedeceu – e vimos linhas paralelas de balas no peito, que só por estranho milagre o teriam deixado vivo.

Seria uma perda de tempo tentar discutir ou procurar explicações racionais. E, pouco depois, outro homem da Fretilin, o tenente Sarai, contou-me como tinha sido atingido por balas indonésias no estômago – e depois, “com sua licença, fui à sentina e elas saíram”, apesar de lhe ter custado aguentar a marcha de 20 quilómetros que fez a seguir… Lembrei-me do título de um livro lindíssimo de Elio Vittorini, “consideram-se mortos e morrem”, e percebi que há ocasiões em que tudo vai de não se considerar morto, não se deixar morrer.

E, afinal, chamemos-lhe memória colectiva, memórias traumáticas, zálimas, fantasmas ou espectros, a questão central do livro-tese da Inês Nascimento Rodrigues é que, como os timorenses mortos pelos indonésios, os mortos santomenses de 1953 se recusam a morrer e perseguem os vivos, para que não os condenem à morte definitiva por amnésia, hoje tão em voga.

Relembremos então os factos, que poderão ler com mais pormenor no livro da Inês Nascimento Rodrigues. Em Fevereiro de 1953, agitando o perigo de uma conspiração comunista visando criar um Governo dos nativos na então colónia portuguesa de São Tomé, o governador Carlos Gorgulho fomentou uma onda de repressão que resultou num número ainda hoje indeterminado de mortos.

Muitos foram abatidos a tiro, em verdadeiras caçadas levadas a cabo por milícias de voluntários. Diversos foram queimados. Alguns morreram asfixiados em celas demasiado pequenas para o número de presos que continham. Muitos foram sujeitos a trabalhos forçados na praia de Fernão Dias. Um dos castigos consistia em “esvaziar o mar”: presos com correntes, eram obrigados a entrar no mar para encher grandes selhas de água salgada, apenas para as despejar em terra, pouco depois.

Em 1989 estive em São Tomé, onde visitei Fernão Dias e o memorial que homenageava os mortos de 1953. Tive oportunidade de ali entrevistar um dos sobreviventes, o senhor Francisco Bonfim. Contou-me que foi preso a 10 de fevereiro, com outros funcionários: “Meteram-nos num jipe e fomos para Fernão Dias. Ali o Zé Mulato deu ordem para nos acorrentar. Puseram-me a cabeça na bigorna, cravaram-me uma corrente ao pescoço, outras na cintura e nos tornozelos e fui mandado “esvaziar o mar”, com uma pipa – um barril de 200 litros cortado ao meio. Prenderam-me uma corda à cintura, que outro preso segurava enquanto eu entrava no mar. Foi assim todo o dia. À noite fui para a cela, e apareceu um preso com um papel, a dizer que o senhor Zé mandou dizer para escrever tudo sobre a guerra da Trindade. “Mas eu não sei nada!” “Sabe, todos os funcionários sabem. Vocês querem matar o governador e pôr o engenheiro Salustiano”.

Bonfim escreveu, mas não foi suficiente: “O preso voltou com o papel, porque o Zé Mulato tinha dito que não chegava: “Tem de dizer que foi assim”. Lá vou escrever. No dia seguinte voltei a esvaziar o mar. No segundo dia, na praia, apareceu o senhor Gorgulho e o polícia disse-me: “Está ali o senhor Governador. Vai lá ter.” E eu aproximei-me e disse: “Senhor Governador, o que é que eu fiz, para estar aqui, acorrentado?” E ele disse: “Você está a fazer teatro. Esteve numa reunião. Com o senhor Pedronho, Teixeira, queriam matar todos os brancos e pôr o engenheiro Salustiano no meu lugar”. “Isso nunca aconteceu!” “É verdade, é tão verdade como vocês terem morto o Amaral a machim. E como se mataram com machim são selvagens, trato-vos como selvagens. Já não são funcionários. Já fiz uma portaria exonerando todos vocês. Durante os quatro anos que vou estar em São Tomé, daqui não sais”.

Entretanto, o preso que segurava a corda quando ele ia ao mar encher a pipa perguntou-lhe se ele era o Bonfim que jogava futebol. Quando soube que sim, disse-lhe que não fosse tão longe no mar, nem enchesse tanto a pipa. À noite, na cela, voltou o homem do papel: “Senhor Zé diz que não chega, tem de escrever mais”. Bonfim voltou a escrever. O próprio Zé Mulato foi à cela: “Tens de escrever, nós sabemos tudo, o senhor Pedronho, o senhor Teixeira, já disseram que você esteve numa reunião”. “Completei mais a mentira”, resumiu o senhor Bonfim. “E no dia seguinte fui para a cidade”.

Nessa noite vieram buscá-lo à cela e levaram-no à Polícia, onde viu caras que nunca tinha visto em São Tomé: “Vem cá para confirmar o que disse em Fernão Dias”. “O que eu escrevi em Fernão Dias é tudo mentira, obrigaram-me a mentir”. Então levaram-no para outra sala, onde estava outro conterrâneo, dizendo: “Aqui o seu amigo diz que o senhor esteve numa reunião”. “E eu disse ao senhor: “Eu penso que vieram a São Tomé para saber a verdade. A verdade é o que eu lhe disse. Tudo isto que eu escrevi é mentira, fomos obrigados a mentir. Mas se quer que eu continue a mentir, eu volto a mentir”. Então ele perguntou onde é que eu fui educado. “Nunca saí daqui, tenho a quarta classe”. Voltei para a cela, estive uns dois meses, até que saímos todos em liberdade”.

Interrogados sob tortura, chicoteados, submetidos à utilização de uma cadeira elétrica, muitos presos foram obrigados a confessar o seu envolvimento numa revolta que, segundo Gorgulho, pretenderia matar o governador e os colonos e distribuir entre si as mulheres brancas. Mais tarde, a própria PIDE havia de negar a existência da conspiração referida pelo governador. E, ao contar-me os tormentos por que passara, foi nesse momento que o senhor Bonfim se emocionou: “O que me custou mais foi ter sido obrigado a mentir!”

A intervenção, a pedido de alguns santomenses, do advogado Manuel João da Palma Carlos, permitiu clarificar a inventona e levar à destituição de Gorgulho. Um conjunto de fatores ajudou a que os massacres em São Tomé se tornassem rapidamente conhecidos no exterior. Alda Espírito Santo, que regressara de Lisboa pouco antes, a 9 de janeiro, e vai secretariar o advogado Palma Carlos na sua investigação, faz chegar as notícias aos amigos do Centro de Estudos Africanos e habituais visitas da sua casa de Lisboa, no nº 47 da Rua Actor Vale: “Confesso-vos que, se eu não estivesse cá a viver, a ver e sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos, eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero. Eu desejo fazer uma exposição simplesmente baseada em dados concretos para que façais sentir aí todo o estendal de crimes que se passou aqui, porque é impossível que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passou não foi mais do que uma matança em série, uma loucura coletiva de parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos”.

Ainda em 1953, o massacre é denunciado num folheto em língua francesa, com fotografias das milícias formadas por colonos e também por auxiliares negros, tendo esta a seguinte legenda: “Os trabalhadores forçados importados das outras colónias portuguesas foram obrigados a participar no massacre”.

No número de Abril/Julho de 1955, a revista Présence Africaine publica o artigo “Massacres à São Tomé”, assinado por Buanga Fele (pseudónimo de Mário Pinto de Andrade), onde é patente o mesmo cuidado de evitar a divisão entre “autóctones” e trabalhadores vindos de outras colónias: “A máxima ‘dividir para reinar’ teve aqui também o seu papel. Os grandes proprietários incitaram os trabalhadores forçados negros à pilhagem e mesmo ao combate contra os autóctones.”. E, no seu penúltimo parágrafo, Mário profetiza a permanência na memória colectiva dos mortos de 1953: “Todos esses homens destruídos pela pilhagem e a pirataria dos representantes dos primeiros ‘colonizadores’ do continente negro se erguem como acusadores”.

Em Janeiro de 1961, Mário Pinto de Andrade edita, em Conacry, “Poètes Noirs d’ Expression Portugaise”, onde inclui o poema de Alda Espírito Santo, “Où sont les hommes chassés par ce vent de folie”, (“Onde estão os homens caçados neste vento de loucura”): “O sangue caindo em gotas na terra/ homens morrendo no mato/ e o sangue caindo, caindo… / Fernão Dias para sempre na história/ da Ilha Verde, rubra de sangue, / dos homens tombados / na arena imensa do cais. (…) Nossas vidas enterradas / nos campos da morte, / os homens do cinco de fevereiro / os homens caídos na estufa da morte / clamando piedade / gritando pela vida, / mortos sem ar e sem água / levantam-se todos / da vala comum / e de pé no coro de justiça / clamam vingança…”

Também em 1962, Miguel Trovoada, num depoimento em Rabat, volta a sublinhar a necessidade de fazer justiça aos mortos de 1953: “O sangue vertido pelos inocentes, os órfãos, as viúvas, reclamam impacientemente por justiça. É todo um povo sofredor que reclama justiça, essa justiça que o colonialismo nunca lhe poderá dar”.

São, pois, os vivos que se batem já contra o colonialismo e pelas independências que a partir de 1953 não deixam esquecer os mortos de Batepá. São eles que mantêm como assombração essa memória, presente já não só nos seus coevos, mas nos filhos e netos destes, como a Inês Nascimento Rodrigues descobriu e revelou, no seu trabalho de campo em São Tomé.

Mas o que a Inês Nascimento Rodrigues encontrou também foi a sempre ameaçadora amnésia, quer no sacrificar o Memorial de Fernão Dias a favor de um porto nunca construído, quer no esquecimento organizado logo depois da inventona de 1953 em relação às vinganças levadas a cabo pelos autóctones, os forros, sobre os trabalhadores forçados vindos das outras colónias, e cujos assassínios lembra Conceição Lima num outro poema: “Se vires um arbusto cor de fogo”: “Quando um dia cismares / No útero da gleba / Não cortes o arbusto cor de fogo / Não mutiles / o arbusto cor de fogo / Não arranques o arbusto cor de fogo. / Tem segredos o arbusto cor de fogo / O arbusto cor de fogo é um segredo / É um segredo. / Não despertes, estrangeiro, o arbusto cor de fogo / Não arranques da terra o arbusto cor de fogo”.

Segundo Conceição Lima explicou a Inês Nascimento Rodrigues, foi um velho forro que lhe disse que aquele arbusto numa gleba significava, por vezes, que, por baixo, estava o corpo de um serviçal – ou seja, de um trabalhador “contratado” vindo de outra colónia – assassinado por retaliação após 1953. O arbusto seria plantado para assinalar o lugar, porque era muito perigoso pisar‑se o túmulo de um serviçal, já que se podia incarnar o espírito do morto, começar a falar a sua língua, entrar em delírio e morrer, se não se fosse tratado por quem percebesse do assunto.

Ao contrário do que a Conceição escreveu noutro poema, e como já confessei, não creio no invisível, nem na levitação das bruxas, nem em vampiros, mas creio na permanência do trauma e admito a transmissão de memórias traumáticas – e, sobretudo, acredito que manter a memória das vítimas é a única forma de justiça ao alcance dos vindouros. E que para isso contribuem não apenas os monumentos, a história aprendida nas escolas, as diversas formas de arte, mas também estes jovens investigadores que, sem memória direta e, aparentemente, sem fantasmas a assediá-los, se deixam assombrar o suficiente para dedicar anos de vida à pesquisa de um passado, apenas porque sim – ou, talvez com maior justiça, por um estranho imperativo categórico.

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