Há a verdade, a lenda e a mentira. Por vezes as três confundem-se de tal maneira que a verdade fica ultrapassada de forma irremediável, e temos uma nova verdade, que faz a verdadeira passar a ser mentira. Um exemplo é que todos sabemos que Hemingway, Van Gogh, Wilde, Picasso e Chatwin tomavam as notas que transformavam em fantásticas obras de arte em cadernos Moleskine. Compramos os cadernos procurando proximidade com eles e, quem sabe, ser-nos transmitido por osmose algum do génio artístico destes Mestres.

O que a generalidade das pessoas não sabe é que a empresa italiana que fabrica e vende os magníficos cadernos com elástico só foi constituída em 1996. A Modo & Modo é uma associação de aldrabões? Não, apenas tomou alguma liberdade (artística?) com a semelhança dos atuais Moleskines com os cadernos usados por eles. Daí que, quando fechou em Tours em 1986 a última papelaria francesa que vendia os cadernos, deixou um espaço que os italianos só ocuparam por estar vago. Assim, enjeitar a paternidade apenas faria a empresa passar, ela, por mentirosa.

Na verdade, os Mestres usavam moleskines, embora não Moleskines. O nome foi cunhado no “The Songlines” de Chatwin, ao contar que o dono da papelaria lhe disse, sobre a morte do fabricante, “le vrai Moleskine n’est plus”. E a Modo & Modo quase não precisa de fazer publicidade para vender cada vez mais. Conta David Sax na “New Yorker” que viu mais cadernos Moleskine numa convenção de tech industry que laptops, uma espécie de vingança do analógico sobre o digital. Os Moleskine começaram a ser vendidos em 1997, ao mesmo tempo que o Palm digital planner, que já está na mesma sala do museu que o extinto dodó.

Para os mais maldosos dos leitores, não, Trump não usa Moleskines, quem diz que ele é um artista fala no sentido figurado. Trump dificilmente escreve mais que 140 carateres de cada vez, o que poria fora do seu alcance uma obra como “Guerra e Paz”. Aliás, da forma como as coisas estão, a única obra literária que seria capaz de protagonizar é “E Tudo a Covid Levou”. E, sinais dos tempos, os Moleskine são feitos na China, escolha que a empresa justifica por a China ter “a mais longa tradição na manufatura de papel”, o que não deixaria de provocar o repúdio do Presidente americano.

Com um passado destes, claro que se pode mentir num Moleskine. Jason Horowitz pergunta-se se um Moleskine pode dizer a verdade, embora sobre os italianos. Mas o Moleskine é o notebook do Artista, Homem de liberdades. Com tais credenciais, é evidente que o Moleskine é o notebook do político, outro homem de liberdades, até com a verdade. Portanto, não há que hesitar – Moleskines gratuitos para todos os políticos. Nada pode piorar, e só pode melhorar a qualidade da prosa, quer se trate de drama, tragédia ou comédia.