Temos desde 2006 uma Lei da Paridade que garante a presença expressiva de mulheres nas listas candidatas aos órgãos de poder político local, nacional e europeu. Atualmente, as listas não podem apresentar dois candidatos do mesmo sexo consecutivamente. Por outro lado, a composição dos órgãos dirigentes da Administração Pública passou a reflectir uma representação mais equilibrada. No mercado de trabalho privado, legislação também vai fazendo o seu caminho. Por exemplo, desde 2009 à licença de maternidade juntou-se a licença parental, que tanto pode ser fruída pela mãe como pelo pai, ou por ambos. E assim vai sendo corrigida uma desigualdade estrutural, que constrangia as mulheres a um papel social já definido. Aconteça o que acontecer nestes tempos conturbados, e ainda havendo tanto a fazer, certamente não haverá muitas mulheres em Portugal na disposição de aceitarem renunciar a serem mais plenamente sujeitos políticos. É a consequência muito concreta de políticas afirmativas.
As mulheres foram sempre uma minoria não por serem menos, mas por serem muito menos do que desejaram ser na participação activa de uma ideia de sociedade de direitos iguais e de efectivação desses direitos. Sob este critério para definir o que é uma minoria, não faltam minorias em Portugal. E não faltam motivos para apoiar as minorias, reconhecê-las numa luta por maior igualdade.
Há, porém, uma outra linha de raciocínio, menos óbvia, mas igualmente urgente. Não a do acesso de minorias às oportunidades, a desmontagem dos bloqueios que as segregam, desde logo dos lugares de plena efectivação da sua cidadania. Mas, inversamente, políticas que travem uma condição de “maioria” a que estão destinadas como uma fatalidade social. Nos supermercados onde fazemos compras, não raro homens e mulheres brancos estão nas caixas enquanto maioritariamente (se não exclusivamente) mulheres negras estão na limpeza dos corredores. Nos jardins por que passeamos, não raro só pessoas negras, mulheres e homens, varrem os canteiros. Nas actividades agrícolas do Alentejo, Algarve e Ribatejo, sejam estufas, olivais intensivos, ou cultura intensiva de abacates, não raro são só migrantes do subcontinente indiano a trabalhar.
Havia que fazer uma proposta de alargamento do conceito de políticas afirmativas, uma legislação e uma prática consonante, que impedisse alguma actividade económica ser desempenhada maioritariamente (às vezes, exclusivamente) por um grupo social. Como exigimos uma Assembleia da República composta paritariamente por homens e mulheres, contrariando uma desigualdade de género histórica, devemos exigir que, por lei, não seja possível que o supermercado do bairro só tenha mulheres negras a limpar os corredores – aliás, é difícil demonstrar que assim não se pratica racismo mesmo sem ser racista! E, para sermos inteiramente consequentes, também não devem os campos agrícolas de Odemira ser admitidos sem uma quota – até uma paridade – de trabalhadores não migrantes.
A respeito da migração, é falsa e inaceitável a associação entre migrantes e insegurança, mas não é muito melhor o que vai subentendido na afirmação de que sem os migrantes a economia portuguesa não avançaria. Se a economia precisa dos migrantes económicos porque aceitam condições laborais que mais ninguém aceita, então está tudo errado. Dizer que os migrantes são bem-vindos para fazer o trabalho que os portugueses já não querem fazer é errado. Apoiar a migração para uma economia que quase escraviza é tão ou mais atentatório quanto expulsar migrantes.
Por isso, a migração económica e a defesa dos direitos laborais dos trabalhadores têm de ser assuntos gémeos. É na sua separação que se perde a capacidade de um discurso justo – uma economia que convide o migrante sem respeitar a sua condição de trabalhador instrumentaliza o migrante e faz de todos nós cúmplices que beneficiamos economicamente da exploração que jamais toleraríamos para nós mesmos. Mas que crítica fazemos à economia que aproveita assim migrantes que precisam desesperadamente desta economia? Uma economia de dignidade, respeito por direitos laborais e sociais, deve ser o começo de conversa de qualquer política de migração. No fundo, para ir ao fundo da questão, dizer que precisamos de migrantes para a economia já é errado se não nos perguntarmos, primeiro, que economia e sociedade queremos. É, certamente, essa a pergunta que migrantes forçados às escolhas duras de lei da oferta e da procura desejariam que fizéssemos.
De volta à proposta, uma política afirmativamente igualitária deve garantir que grupos sociais que, de outra forma, estariam destinados à condição de minorias da fruição do desejável, se libertem dessa condição e possam desejar tanto quanto a maioria. Mas, além disso, se levada a sério, uma política assim deve ainda garantir que grupos sociais que, de outra forma, estariam destinados à condição de maiorias do indesejável, também se libertem e tenham um companhia social justa na partilha do indesejável. Não é aceitável, repito, querermos que outros, subalternizados, venham fazer aquilo que não nos dispomos a fazer e que nos diz inteiramente respeito.
Esta segunda parte da política igualitária – não querermos maiorias do indesejável tanto quanto não queremos minorias do desejável – está, no entanto, completamente ausente do nosso país. É parar um instante nos nossos quotidianos de azáfama e olhar em volta para quem vai limpar a casa de banho pública que acabamos de usar, quem passa a esfregona no corredor do supermercado, quem varre o chão do jardim, quem colhe os abacates e as azeitonas. É parar e deixar que o desconforto da consciência se instale e, então, pensar que alguma coisa está profundamente errada e tem de ser mudada. Imagino que para um liberal cheio de iniciativa esteja tudo certo, mas realmente não está.
Os migrantes económicos e os grupos racializados são duas faces deste falso “paraíso” de acolhimento e de respeito social que se tornou a receita da economia portuguesa. Dizer que não são de cá e impor a condição de favor é, bem vistas as coias, apenas uma variante mais dura dessa participação, sem condições, do regime económico que aceitamos que se promova.
Sensibilizemo-nos socialmente olhando em redor. E depois de ver, repetidamente, que é assim, perguntemo-nos – Por que razão aceito politicamente que o supermercado aonde vou todos os dias tenha só mulheres negras a passar esfregona no chão? E por que aceito que o jardim público onde brincam as crianças da vizinhança tenha só homens negros a varrer canteiros, homens cujos filhos nem sequer vivem perto? E por que aceito também que as explorações intensivas do Sul tenham só migrantes económicos em condições laborais que, em condições normais, ninguém toleraria?
Impedir que o regime sócio-económico que partilhamos seja uma fonte de guetos laborais é um imperativo de justiça basilar a que estamos a falhar. Uma política afirmativamente igualitária, uma espécie de lei da paridade ampliada ao indesejável, ao que não queremos para nós mas que tem de ser feito, responderia pelo menos em parte a vários dos mais profundos problemas sociais do nosso tempo. Mas neste campo está mesmo tudo por fazer. Sensibilizemo-nos para começar.