Uma sociedade livre e democrática, além da realização de eleições regulares, livres e justas, define-se pela forma autónoma como os cidadãos, entidades sociais e empresariais se associam e organizam entre si. Este quadro de regras é igualmente válido para a prestação e o financiamento de cuidados de saúde, tanto através de um sistema universal como por meio de subsistemas mutualistas ou cooperativos.
As notícias e especulações sobre a ADSE, que se têm repetido nos últimos meses, subsistema de saúde com o qual partilhamos muitas das características, leva-me a partilhar algumas notas sobre o que temos aprendido enquanto gestores do SAMS Quadros. No fundo, algumas observações sobre os mitos e as realidades com que se defrontam os subsistemas de saúde em Portugal.
Comecemos pelas realidades. Primeira: nenhum subsistema será viável, no médio e longo prazo, se não tiver o SNS como seu primeiro prestador de cuidados primários. Os subsistemas são, e serão sempre, na sua essência, complementares do SNS.
A segunda realidade é que em toda a OCDE os gastos com a saúde, fruto do envelhecimento das sociedades e de técnicas mais inovadoras de terapêutica, estão a crescer entre 4% e 6% ao ano. Para acomodar isto, torna-se necessário, entre outros factores, envolver mais os beneficiários na medicina preventiva, no co-pagamento e na validação dos actos da medicina curativa.
Terceira realidade, todos os subsistemas têm que possuir um corpo de consultores clínicos que ajudem a detectar a fraude, a preparar a negociação técnica com os prestadores de saúde e a verificar a razoabilidade de actos que devam estar sujeitos a pré-autorizações/termos de responsabilidade. As pré-autorizações, com validação clínica, devem ser a norma em cirurgias, implantes operatórios, tratamentos continuados, entre outros.
E os mitos?
Existem vários. O primeiro, talvez o mais enraizado, é o mito de que existe alguma coisa gratuita no domínio da prestação de cuidados de saúde no sector social ou no privado. No domínio das cirurgias, por exemplo, advogar que apenas se devem pagar os honorários médicos, ignorando o custo dos equipamentos e dos blocos operatórios. Convidando, implicitamente, a que esta ilusão seja subsidiada com o recurso a preços absurdos dos medicamentos ou dos consumíveis administrados em ambiente hospitalar.
O segundo mito é o de acreditar que o trabalho médico pode ser mal remunerado, colocando-o ao nível do custo por hora de um trabalhador pouco especializado, quando se procura impor aos prestadores privados de saúde valores de consultas que não pagam o investimento dos médicos na sua formação. Valores que não pagam também os investimentos necessários em instalações, equipamentos de diagnóstico e pessoal de suporte.
Acresce que quando se paga tardiamente aos prestadores de saúde, tal aumenta o prémio de risco e promove a subsidiação cruzada e artificial, enquanto instrumento protector face aos prazos de pagamento anacrónicos.
O mito mais perigoso de todos, no entanto, é outro: o de acreditar que uma renovação demográfica, proporcionada por miríficos novos beneficiários, irá possibilitar que se ignore as realidades acima enunciadas.