Este texto não é sobre o caso Robles. É sobre muitas reacções mainstream que o caso motivou, elas próprias dignas de serem consideradas um caso.

Desde logo, as que viram no sucedido uma lição bem dada ao Bloco de Esquerda (BE). A realidade é assim mesmo, sejam do BE ou de qualquer outro partido, o moralismo é que vos tolda a vista. Caso contrário, veriam que, quanto mais se chegarem ao poder, mais será nisto que se transformarão. Uma espécie de demonstração, pelo exemplo, de  que “não há alternativa” e que, portanto, o que o BE anda a fazer na vida pública está fundamentalmente errado.

Curiosamente, em nenhum dos artigos de opinião de analistas de todos os quadrantes se vêem quaisquer referências aos debates sobre o direito à cidade, sobre a necessidade de manter um nível de rendas acessíveis aos ordenados médios das pessoas que trabalham na cidade, debates estes que têm ocupado as outras  grandes cidades turísticas do mundo. Não vemos essas referências decerto porque só viriam atrapalhar a acusação de moralismo a um partido de esquerda português especialmente empenhado num problema que se sabe global e cada vez mais grave. A isto chama-se instrumentalização da opinião pública.

Uma segunda forma de reacção ao caso Robles é a dos articulistas que se chegam à frente, de peito aberto, e dizem: Eu também! Dá vontade de perguntar: Eu também o quê? Ah, é senhorio, tem alojamento local. Que bom para si. Se não se esquecer de declarar tudo, como manda a lei, e fizer o contributo justo para a sociedade com os seus impostos, qual é o problema? O ridículo neste tu quoque! dirigido aos próprios é vê-lo estendido ao próprio Marx por ter experimentado investir quase nada na bolsa.

O ponto a que se chega para mistificar a natureza do problema. É que há de facto um programa político que, não sendo contra a propriedade privada, é contra a desregulação dos seus usos, em particular a absoluta liberalização dos usos da propriedade, do tipo: se é meu faço o que bem entendo.

Há medidas objectivamente contrárias ao interesse dos proprietários que querem obter a maior exploração possível do seu património. Medidas como não permitir alojamento local todos os 365 dias do ano, ou só o permitir em propriedades onde o proprietário também resida (vai longe o tempo em que falávamos de economia da partilha…), ou não permitir que o mercado de alojamento local supere uma dada quota no quadro do mercado de arrendamento, ou não permitir que um proprietário tenha mais do que um certo número de imóveis em regime de alojamento local. Podem ser medidas alternativas, mas também podem ser medidas conjuntas, com geometrias variáveis.

Além disso, é preciso diferenciar alojamento local como solução realista e perfeitamente razoável de obtenção de rendimentos onde muitas vezes não há outros disponíveis, sobretudo entre quem é da cidade, e a aquisição de imóveis e sua transformação em alojamentos locais para obter os rendimentos de capital que a bolsa ou a banca não consegue dar. Sem diabolizações demagógicas.

O caso Robles serviu a quem quis desmerecer o BE com a velha cantilena de que vocês não são melhores. Também serviu a quem está a pôr os olhos nos seus interesses e que, para não ter de pôr a descoberto uma oposição directa ao programa político do BE, aproveita a boleia de um caso, para o qual se está verdadeiramente nas tintas, para demolir esse programa. A ambas as estratégias serviu bem o argumento do pretenso moralismo. Mas o pior de todos os préstimos para os quais se usou o caso Robles foi para abrir de par em par as portas ao imoralismo, defendendo que, além do seu desempenho estritamente político, tudo o que os políticos façam ou deixem de fazer é politicamente irrelevante.

Ironicamente, tanto o moralismo como o imoralismo cancelam a política tal como a conhecemos. O primeiro mata a política tornando-a uma continuidade de juízos morais, o segundo mata-a fazendo dela uma actividade indiferente à moral. É importante não perder de vista algumas distinções, ou então, na contundência do debate, acabamos simplesmente a dar caneladas no que queremos defender.

O pluralismo é antes de tudo a assunção de que a sociedade não comporta uma, mas várias visões, com escalas de valores diferentes; em suma, várias moralidades, fruto de heranças religiosas, tradições socioculturais, hábitos das comunidades. As morais são incontornáveis mediadores da nossa socialização: medeiam conflitos, incentivam alguns sentidos de acção enquanto desincentivam outros, proporcionam esquemas de sociabilização – aquilo a que Jean-Pierre Changeux chamou “prêts-à-se-comporter”, talvez adivinhando como tudo isto passa muito pelas indumentárias.

Em parte, a tarefa da política é constituir instituições justas que garantam e até promovam esse pluralismo. Era esse o propósito do teórico político mais avesso a moralismos que conheço — John Rawls. Na verdade, nada é mais incompatível com o pluralismo que apreciamos do que o moralismo em política. Este, entrando pela política adentro, está sobretudo interessado em reprimir a liberdade de outras visões do mundo e da vida. A exaltação moral é feita à custa da imprecação contra a moral alheia. Com poder político suficiente, é a porta aberta ao totalitarismo.

Mas a política, tal como a praticamos em democracias plurais e representativas, é também incompatível com o imoralismo — que está longe de ser o conceito oposto do moralismo.

As democracias modernas como a nossa, baseadas na representação política, são indissociáveis de uma relação de confiança entre representante e representados, pois estes estão dispostos a aceitar que aquele esteja e delibere por eles, confiando no seu juízo. Não são democracias de mandato imperativo em que o representante é apenas um delegado. E confia-se no seu juízo em função de uma credibilidade adquirida. Pelo representante individualmente e pelo partido cujas listas o integraram.

Cada eleito é representante formal dos seus eleitores, mas leva consigo outras representações sociais, dos jovens, dos velhos, das mulheres, de uma minoria, de uma religião, dos que vivem só do rendimento do trabalho, dos proprietários. E os eleitores sabem isso e tomam isso em conta nas suas escolhas. Bem como os partidos quando definem as suas listas. Bem como o legislador quando estabelece regras como a da paridade eleitoral. Ninguém é simplesmente representante dos seus eleitores mediante um programa político escrito.

A credibilidade do eleito pode dever-se muito ao escrupuloso cumprimento de um programa político. Mas achar-se por isso que, do alto da sua credibilidade, um eleito não deve mais nada a essa mesma credibilidade, é falhar por completo a compreensão do que é a representação política nas democracias modernas. Um exemplo simples demonstra-o: a representante política que se elege com um programa que defende a ilegalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) perde credibilidade política e capacidade de representar politicamente esse programa se se descobre que, afinal, também ela recorreu ao aborto.

Argumentar que o fez antes de ter sido eleita é tão pateta que faz perguntar se era outra pessoa com outros valores antes da sua eleição.  Argumentar que o praticou dentro das regras legais da IVG, se não é hipocrisia é de um legalismo tão deslocado que não merece credibilidade nenhuma. Argumentar-se que os eleitores não têm que se meter na esfera privada da vida da eleita seria correcto se essa esfera privada não tivesse sido ingrediente do processo de credibilização de um candidato a representante. De outro modo, é querer que parte significativa da credibilidade que valeu para fazer um representante deixe de ser tida em conta no escrutínio da credibilidade.

É uma monumental batota que deve ser denunciada não apenas em modalidades formais de representação política, entre eleitores e eleitos, mas também, ainda que de forma menos comprometedora, nas múltiplas modalidades de representação informal que preenchem, dinamizam e vivem à conta do espaço público, a começar pelo comentário e análise política pagas.

A representação política é escrutinada em duas dimensões. A primeira prende-se com a racionalidade do exercício da representação e avalia a performance  estritamente política do eleito, se debateu bem, se decidiu bem, se se empenhou muito, etc. A segunda prende-se com a relacionalidade com os representados (eleitores ou não); é, portanto, de ordem ética e o que avalia é se a confiança saiu reforçada ou diminuída, se se manteve ou se perdeu. Estas duas dimensões, uma de virtuosismo outra de virtude, estão sempre em causa na representação, estejamos a falar de eleitos ou de partidos, ou mesmo do regime.

Mas, dito isto, é importante deixar claro que há limites para o que pode estar em jogo na avaliação da representação política. Primeiro, intrusões gratuitas em aspectos da vida privada irrelevantes para a representação — por exemplo, quando um eleito para um programa de defesa do estado social vê escrutinado o seu gosto tauromáquico. Segundo, um uso abusivo, que se tornou muito insistente nas últimas semanas, de pequenas contradições insuperáveis em vidas normais.

A ver se nos entendemos: aquilo a se chama uma contradição performativa, um “pregar e fazer o contrário”, é, por exemplo, um representante do combate à especulação imobiliária ser afinal um ás da mesma, esta parte convenientemente ignorada na formação da sua credibilidade enquanto candidato, que pôde assim ser eleito. Ou então a activista eleita dos movimentos pró-vida que solicita um acto de aborto. Mas quem prega anticapitalismo não pode ter algum rendimento de capital como forma de subsistência numa economia capitalista? Quem tem um quarto livre não o pode arrendar complementando um ordenado que não chega? Quem consegue poupar um subsídio ou dois não pode pô-lo a render num banco sem que lhe apontem um dedo acusador de contradição? Que disparate de filme a preto e branco é esse de chamar burgueses a estes apenas porque não vivem do seu salário? E se não tiverem salário e sobreviverem com uma renda ? E não há salários burgueses?

Por isso, a avaliação da representação política não pode ficar a cargo de nenhum outro dispositivo que o juízo político e ético. Por parte dos representantes, eleitos ou partidos por que se elegem, através de consciência crítica, e por parte do cidadão comum, através do voto ou, antes disso, através da participação activa do debate público. Há quem se queixe que isto é a morte da política. Pelo contrário, é da essência da política estar em causa ganhar a sua credibilidade. O garantismo com que alguns representantes, formais ou informais, procuram dispensar-se da credibilidade dá bem conta de uma apropriação da representação a que mais valia chamar entronização.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.