A pergunta contém, claramente, uma provocação que procura revelar uma discriminação de género histórica, dada a desigual quantidade de vozes femininas e masculinas, por um lado, e um eventual viés sobre a atualidade comentada, em consequência daquela desigualdade, por outro. Porque aceitamos nós, mulheres e homens, um contexto tão desigual e estruturalmente injusto?

Um olhar por todos os espaços de comentário, tanto nos canais generalistas de televisão como nos temáticos de informação, demonstra que as mulheres são não-presença assídua. Nos jornais portugueses, tanto online como offline, o cenário é de semelhante ausência feminina. Uma ausência tão evidente que, como membros de públicos vastos e, aparentemente, indiferenciados, somos levadas/os a acreditar que o que nos é apresentado pelos “senhores que sabem” – como ainda neste verão escutava numa das muitas conversas de praia por entre leituras sonolentas junto ao mar – é o natural, o adequado ou o inquestionável.

Por muito que até possamos questionar o que estes comentadores/analistas/cronistas escrevem e/ou dizem, não somos sobressaltadas/os com igual inquietação pelo silêncio mediático de mais de metade da população – ou das suas representantes. Sendo este o texto inaugural que aqui escrevo, parto precisamente do questionamento de opções de todos os jornais e canais de televisão em Portugal, sem exceção, no que respeita ao lugar de fala nos meandros do comentário, da análise ou da crónica. Tudo isto sob a perspetiva de género.

Se o tempo da mulher como voz de comando apenas – e nem sempre – para os filhos e de ser a protagonista de histórias sem fim de sujeição parece querer tornar-se démodé, porque continuamos no nosso tempo a negar o acesso e a permanência de mulheres no espaço público mediático, na interpretação e análise da atualidade noticiosa? Já iremos às possíveis causas, mas, para já, talvez seja oportuno referir que os nomes de mulheres comentadoras e/ou cronistas que, porventura, o leitor possa estar a elencar constitui, antes de mais, a exceção a uma regra de notória desigualdade de género e de consequente enviesamento da interpretação da realidade construída pelos órgãos noticiosos portugueses.

Como viemos aqui parar?

A resposta a esta pergunta podia sair de uma discussão entre pais e filhos que, há dias, testemunhei numa cidade do litoral em pleno mês de agosto pandémico. Após troca de argumentos em tom esganiçado, mais ou menos justificada, por duas crianças, uma menina de cerca de cinco anos e um menino de cerca de oito, ouve-se a voz da mãe a exigir silêncio aos filhos, a que se segue a voz do pai a exigir que a menina se calasse imediatamente, com o seguinte argumento: “Uma menina bem comportada não fala alto.” Indignada, a menina relembra ao pai que o irmão também estava a gritar. Na volta, o pai, apoiado pela mãe, acentua: “Pois. Mas ele é menino. As meninas lindas não falam alto.”

O micro-relato de um episódio familiar em contexto de veraneio ajuda a ilustrar o tanto que temos de caminhar rumo à equidade. Como foi dito àquelas crianças – menina e menino – que as meninas devem ser mais recatadas porque assim deve ser, é dito há gerações incontáveis que o lugar ‘natural’ da menina, da rapariga, da mulher é privado, com responsabilidades na educação, no cuidado e no apoio assistencial à família. E que o acesso ao trabalho pago, à vida pública e à ação política seria sempre uma fuga às suas funções essenciais.

Esta pode ser, então, a nossa primeira causa para o statu quo no comentário/análise noticiosa: vivemos e continuamos a dar força a um sistema patriarcal que, antes de tudo, dá, naturalmente, voz pública ao homem; homem que reserva – ainda de forma significativa – para si um forte poder de decisão sobre a condição da mulher: é líder no trabalho, é decisor político, é chefe, é patrão…

Se o sistema patriarcal continua a elevar o homem ao domínio público da informação, da ação política, das hierarquias sociais, o mesmo sistema continua, inevitavelmente, a empurrar as mulheres para a reserva do espaço privado, mantendo-o como o seu lugar natural, facto que dificulta o acesso da mulher ao espaço público, dominado historicamente por homens, como ainda hoje se verifica na limitada presença da mulher no comentário e na análise, seja na televisão ou nos jornais.

Podemos, então, questionar se não será tempo de assumirmos, nomeadamente ao nível da escola e do ensino superior públicos, medidas que contrariem atitudes sexistas que, umas vezes assumida e outras inconscientemente, perpetuam este estado de coisas. Uma mudança coletiva, que deve ser estrutural, política e cívica, que acabe com o ciclo de poder instalado impõe-se.

Não sendo inquestionável que, no caso do comentário, os contributos femininos fossem mais pertinentes e respondessem melhor às necessidades informativas da globalidade das pessoas, sabemos que, pelo menos, o debate público seria mais equitativo, permitindo uma espécie de female gaze que, em certa medida, beneficiaria tantos aspetos da nossa vivência. Os jornais e as televisões deixariam, desse modo, de ser um dos porta-estandartes do male gaze, cristalizando o ponto de vista masculino sobre a atualidade, sobre a interpretação noticiosa efetuada e sobre as construções da realidade operadas pelos média.

Daqui podemos ir para onde?

Se, no início da década de 1970, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa criaram as Novas Cartas Portuguesas, enfrentando um regime atávico, conservador, patriarcal e machista, precisamos hoje de mulheres – e homens – que criem e pratiquem uma nova retórica da resistência. No combate ao atual desequilíbrio entre géneros nos vários contextos da sociedade portuguesa, especialmente na difícil escalada aos níveis decisórios e aos lugares de fala por excelência, os órgãos noticiosos e os seus espaços de comentário e análise podem e devem ter um papel fulcral.

Uma possível estratégia de ação poderá passar 1) pelo levantamento amplo, criterioso e sistemático – num período de tempo considerável – de todos os participantes em espaços de comentário, de análise ou de crónica (uma missão quer para a academia quer para o sindicato, por exemplo); 2) pela assunção da relevância de vozes diversas, em situações de paridade, nas mais diversas instâncias e cargos; 3) e pelo reconhecimento público e premiação das empresas de comunicação que implementem planos de igualdade de género, seja entre colaboradores, seja nos conteúdos que resultam para os públicos. Paralela e complementarmente, a integração de módulos e/ou unidades curriculares sobre equidade e paridade nos planos de estudos de cursos superiores das Ciências da Comunicação e outros.

Este é um plano de ação para desconstruir o óbvio: não foram as mulheres – a maioria – que se votaram ao silêncio, mas compete-lhes (também) ultrapassar a mudez a que foram historicamente submetidas. Mesmo num contexto aparentemente diferente, mais aberto à participação mediática dos vários géneros nos espaços de opinião pública, comentário em TV e crónica/análise em jornal, estamos longe, muito longe, de uma justiça de género também ao nível mediático. Estamos a ler cada vez mais notícias escritas por mulheres, contudo, comentadas por homens; homens que continuam a dominar tanto os lugares de fala como quem tem acesso a estes locais.

Precisamos, por isso, de criar uma realidade mais paritária. Será bom para todos: para as mulheres, porque acedem aos lugares de fala em espaços mediáticos e noticiosos, e para os homens, porque da partilha destes espaços sairá, necessariamente, uma nova perspetiva de leitura do mundo, da atualidade e das várias realidades apresentadas nas notícias. Uma conciliação entre o male gaze e o female gaze, não uma anulação de ambos.