Fazia calor naquele 15 de Agosto de 2021. Maryam Shahi vestiu uma blusa larga de algodão e colocou um leve lenço de seda sobre o cabelo, sem o cuidado de o cobrir totalmente. Como de costume, foi para a redacção do Nimrokh, o jornal onde escrevia sobre direitos das mulheres afegãs — a situação tinha melhorado nos vinte anos que se seguiram ao derrube do regime islamista, mas havia ainda muito caminho a percorrer. Comentou com o director que tinha de sair para comprar uma mala de viagem para a irmã, que acabava de entrar de férias das várias universidades onde dava aulas. Não chegou a fazê-lo: os talibãs estavam a entrar em Cabul. Nas horas, dias e semanas que se seguiram, o mundo de Maryam desabou.

Seria uma questão de tempo – pouco tempo – até começarem a reprimir as mulheres afegãs tão violentamente como antes. Muito depressa se tornou evidente para Maryam que teria de abandonar o Afeganistão. A equipa da Euronews, com a qual colaborava, e membros dos Repórteres Sem Fronteiras, mobilizaram-se para a tirar do país. Houve várias tentativas, muitas idas frustradas ao aeroporto. Até que…

Era 26 de Agosto e o acordo com os talibãs previa que as evacuações aéreas terminassem no final do mês. O dia ia longo. Mais uma vez, Maryam tentava ultrapassar as barreiras militares e entrar no aeroporto, tal como tantos outros que diariamente se aglomeravam nos portões. Por volta das seis da tarde, uma enorme explosão fê-la estremecer. A seguir, foi o caos. Viu corpos de soldados americanos presos no arame farpado (morreram 13 militares); viu centenas de pessoas tombadas sob um rio de sangue, em ambos os lados do canal (morreram 180 civis). E, nessa noite, o último avião voltou a descolar sem ela.

A única alternativa era sair pela fronteira terrestre, apesar do risco de ser presa no caminho, ou sofrer abusos. Semanas depois, rumou ao Irão para dali tentar chegar à Europa. Foi lá que ficou a saber qual seria o seu destino final. Aterrou em Portugal em Setembro de 2021, por via do programa de admissão humanitária que, desde então, abriu as portas a cerca de 1400 afegãos.

Maryam Shahi vem de uma linhagem de exílio: os hazaras, muçulmanos xiitas, são há muito perseguidos no Afeganistão. Mas por muito que essa narrativa de refúgio esteja inscrita na sua biografia, mudar-se para Portugal foi toda uma experiência nova, ora difícil e traumática, ora renovadora e desafiante.

Vai acompanhando daqui as notícias, também através das redes sociais dos amigos e das conversas mantidas à distância com aqueles que ficaram. Assiste com angústia ao deteriorar, de dia para dia, das condições das mulheres. Perderam o acesso à educação, ficaram proibidas de andar em espaços públicos sem um homem da família, não podem mostrar a cara, e agora, mesmo em casa, estão impedidas de cantar ou falar se forem ouvidas na rua. O silenciamento por parte do regime é literal.

“Vivo em Lisboa, mas o Afeganistão continua a ser importante para mim. Não consigo ficar a ver as pessoas morrer. Tento ajudar e não consigo. É muito duro”.

Maryam não quer ter um papel secundário em Portugal. Participa em algumas manifestações, como foi o caso dos protestos contra a morte da jovem iraniana Mahsa Amini, detida pela polícia por não usar o hijab com o preceito exigido. Para além disso, há falhas no programa de inclusão de refugiados que gostaria de ver resolvidas, mas ainda não encontrou espaço para ter uma voz activa — ela que tanto denunciava e intervinha.

A participação cívica é uma das dimensões da integração assumidas pelos Estados-membros da União Europeia, na Declaração de Saragoça, adoptada em Abril de 2010. Mas damos pouca atenção ao facto de que muitas vozes – como a de Maryam – continuarem sem conseguir fazer-se ouvir. “É um dos nossos grandes falhanços na integração”, afirma o sociólogo Pedro Góis. Seriam as pessoas certas para exigir o cumprimento dos seus direitos e apontar o que deve ser corrigido. Mas, pelo contrário, são negligenciadas. “Estas pessoas não estão recenseadas e não votam: não sendo eleitores, não são um público-alvo e, portanto, muitas das suas demandas são esquecidas.” Assim, continuam a faltar medidas que considerem as necessidades específicas das mulheres quando se desenham políticas para refugiados e imigrantes.

A lista de obstáculos que as mulheres têm de ultrapassar é grande e prende-se com momentos elementares do processo de inclusão. Sabe-se, por exemplo, que enfrentam maior precariedade laboral. São remetidas para empregos social e monetariamente mais desvalorizados, com um risco de pobreza muito superior ao dos homens migrantes. Muitas acabam por arranjar empregos relacionados com o cuidado — nas limpezas ou como auxiliares de pessoas idosas ou de crianças — que implicam estarem fechadas numa esfera doméstica, longe do olhar público, tornando-as mais invisíveis e expostas a riscos.

No caso das muçulmanas, o problema começa muitas vezes pela aparência, quando usam o hijab, e não são contratadas por cobrirem o cabelo com um lenço. Para além disso, é frequente os maridos não encararem de ânimo leve o facto de as mulheres serem o ganha-pão da família, e consideram que é a eles que cabe essa responsabilidade. Mesmo elas, podem não ver isso com bons olhos, por não ser esse o papel que anteciparam para si.

Para além das questões ligadas à religião e à cultura, que saltam para os novos contextos quer se queira, quer não, as mulheres racializadas enfrentam em cima disto mais uma camada de preconceito e dificuldade de acesso.

Trazer qualificações ajuda, mas não é uma garantia de sucesso. O processo de reconhecimento é tortuoso, e acabam muitas vezes por não ser consideradas, com todo o desperdício de conhecimento e experiência que prejudica as próprias e o país.

Durante o seu programa de apoio, Maryam ouviu com frequência que teria de arranjar trabalho rapidamente, nem que fosse nas limpezas, ou a servir num restaurante. Não era isso que sonhava quando veio para a Europa. Mas tem consciência de que, enquanto não falar a língua, tudo custará mais a resolver-se.

Muitos estudos mostram que a aprendizagem do Português é de uma enorme dificuldade para pessoas adultas, que trazem uma bagagem de trauma e, por vezes, pouca escolaridade e desconhecimento do Alfabeto. Isto ajudará a explicar que na fase final do programa de acolhimento (18 meses), só 8,4 % das pessoas refugiadas revelam um domínio da língua e 14,4 % terminam sem entenderem nem falarem português, segundo números de 2022 do Observatório das Migrações. Os resultados são ainda mais preocupantes no caso das mulheres, com constrangimentos de acesso específicos (questões culturais, cuidado dos filhos, etc.).

A urgência em resolver esta lacuna é enorme porque a barreira linguística traz uma longa lista de obstáculos associados. Dominá-la, ajuda a navegar o labirinto burocrático, aceder aos serviços de saúde, acompanhar os estudos dos filhos, arrendar casa, encontrar trabalho… E, seguramente, maior participação cívica.

Francisca Gorjão Henriques assina este texto na qualidade de autora do ensaio “Mulheres refugiadas em Portugal”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a FFMS.