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Na era das redes sociais e das grandes empresas tecnológicas, será possível proteger a privacidade?

A Internet, dadas as suas características de desmaterialização e ubiquidade, faz ressurgir conteúdos ilícitos a qualquer instante. Será que estamos todos a viver em liberdade condicional?
6 Março 2019, 08h26

Não é possível responder aos atuais desafios colocados à privacidade, cada vez mais pelo setor tecnológico, se não somos capazes de delimitar o seu âmbito conceptual. Sendo assim, a primeira pergunta é inevitavelmente epistemológica: o que é a privacidade? De um ponto de vista histórico, procurou-se uma noção jurídica unívoca. Neste sentido, Raymond Wacks construiu a privacidade como um conceito-chapéu, divisível através de três componentes dialogais.

São eles o segredo (secrecy), o anonimato (anonymity) e a solidão (solitude). A privacidade é posta em risco quando alguém obtém informação sobre o outro (secrecy), a processa de forma a ter uma imagem completa sobre essa pessoa (anonymity) ou, em última análise, chega ao contacto físico com ela (solitude). Porém, tal com afirma Daniel J. Solove, a busca de uma noção jurídica é ineficiente face às suas constantes mutações no espaço e no tempo. Neste contexto, a abordagem à privacidade na era da Web 2.0 deve fazer-se (i) de forma parcelar e (ii) de baixo para cima.

Quanto ao estudo parcelar, o conceito de “semelhança familiar” de Ludwig Wittgenstein ensina-nos que várias matérias podem se agrupadas dentro de uma mesma família ainda que apresentem diversas dissemelhanças. A Law & Technology tem sido desenvolvida mediante este critério. O Regulamento Geral de Proteção de Dados, a Lei do Cibercrime, a Diretiva relativa aos Direitos de Autor no mercado único digital, o Regulamento relativo à portabilidade dos serviços de conteúdo em linha no mercado interno, etc., são diferentes entre si, mas todos contribuem para a compreensão do problema da privacidade no contexto tecnológico.

No que respeita ao segundo ponto, o conceito de privacidade deve ir de baixo para cima e não de uma ideia geral e abstrata que se impõe para baixo. Vejamos, é através da experiência da observação que a ciência jurídica tutela um conjunto de situações críticas. Esta foi a posição do legislador português ao dar-lhe uma configuração de direito defensivo. Segundo Oliveira Ascensão, tanto a lei constitucional (artigo 26.º da CRP) como a lei civil (artigos 70.º e ss. do CC), em vez de preverem um conceito dedutivo de privacidade, tutelaram um conjunto de situações que a prática demonstra serem lesivas da mesma. Em suma, a matriz continental da privacidade é eminentemente defensiva e epistemologicamente pragmática e funcional.

Se a disciplina de Technology Law não constitui um corpo dotado de autonomia científica, a solução para o problema deve ser encontrada através da conjugação dos instrumentos clássicos com o Direito da Sociedade da Informação. No primeiro plano, a privacidade é um Direito Humano (art. 12.º da DUDH), um Direito Constitucional (art. 26.º da CRP) e um Direito Subjetivo de Personalidade (art. 80.º do CC). O Direito Penal, na sua função de ultima ratio, tutela igualmente esta problemática (arts. 190.º a 194.º do CP).

O atual Direito da Sociedade da Informação procura responder aos já longos obituários traçados à privacidade. Scott McNeally, antigo CEO da Sun Microsystems, disse em 1999: “Privacy is dead. Get over it.” A União Europeia está a reanimá-la mediante a proclamada Digital Market Strategy (DMS). Alguns dos seus pilares são formados através do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), o Regulamento de e-privacy (ePR) e o Regulamento de Certificação Digital Europeu (eIDAS).

Em suma, ainda que o Direito procure responder ao conflito da privacidade com as novas tecnologias, a primeira e mais importante responsabilidade é nossa. A Internet, dadas as suas características de desmaterialização e ubiquidade, faz ressurgir conteúdos ilícitos a qualquer instante. Será que estamos todos a viver em liberdade condicional?

 

Nota: este texto é a versão resumida do artigo vencedor da competição “Law and Technology Award” da Abreu Advogados.

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