A primeira mulher presidente do Chile, Michelle Bachelet, acaba de assumir funções como Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, completando um percurso político ímpar e marcado por grande coragem e resiliência.

Na sua biografia notável, não tem faltado destaque ao período negro que viveu durante o golpe militar do Chile, em 1973, que depôs o governo de Salvador Allende, dando início a uma ditadura que prendeu, torturou e assassinou milhares de civis e opositores ao autoritarismo. Bachelet é uma sobrevivente da barbárie de Pinochet, tendo sido presa e torturada pela sua oposição ao regime, um facto a que foi dado grande destaque pela imprensa aquando a sua nomeação.

“Viveu sob a escuridão da ditadura”, terá dito o Secretário-Geral das Nações Unidas. Assistiu ao angustiante desmoronar da democracia chilena e à perseguição implacável de muitos dos seus compatriotas, que desapareceram sem deixar rasto.

Tal como Bachelet, muitos outros que estiveram do lado de Allende sobreviveram à transição brutal operada no Chile, como o escritor Ariel Dorfman, argentino-chileno de origem judaica, assessor cultural de Allende, que foi forçado a uma vida de exílio após o golpe.

Nos anos seguintes ao golpe militar, Dorfman foi uma das vozes literárias mais fortes a denunciar a tragédia política e histórica do Chile, o trauma e angústia mental que permanecem por muito tempo após a violência.

Lembrei-me de Dorfman porque a protagonista de uma das suas obras mais famosas, a peça “Death and the Maiden”, poderia ser a história da própria Bachelet. Na peça, a protagonista Paulina Salas é confrontada com um homem que ela alega ter sido o médico que a torturou durante a sua prisão no tempo da ditadura. Gerardo, o marido de Paulina, acredita que ela cedeu à loucura e tenta chamá-la à razão, mas as feridas do passado acabam por reabrir, regressando o ressentimento, a culpa e a paranoia.

Ariel Dorfman regressou ao Chile muitos anos depois, pondo fim ao seu exílio, mas não deixou de confessar algum distanciamento face ao país a que deixou de pertencer. As suas obras recordam-nos, com frequência, do privilégio que muitos de nós temos em viver num local onde podemos escolher o nosso modo de vida, sem nos sentirmos ameaçados. Esquecemo-nos do quão facilmente a História intervém e monta uma armadilha, fazendo desaparecer tudo aquilo que tomávamos como garantido.

No mês em que se assinalam 45 anos sobre o golpe perpetrado pela Junta Militar, a história conjunta de muitos chilenos naqueles dias fatídicos de setembro de 1973 é ainda uma de assombração, trauma e culpa. Numa altura em que a América Latina enfrenta múltiplos desafios económicos e democráticos, com situações explosivas em Venezuela, Argentina e Brasil, esperemos que Michelle Bachelet possa ser uma voz de razão, exemplo e perseverança nestes tempos novamente turbulentos.