Cresci no mundo da restauração. As minhas memórias mais antigas são de uma infância sentada numa das mesas do restaurante dos meus pais, a aprender o alfabeto enquanto a típica azáfama de um restaurante fervilhava à minha volta. Esse mundo continuou a acompanhar-me ao longo dos anos, e ainda hoje faz parte de mim.

Logo na viragem do século, irromperam várias crises que deixaram as suas marcas no setor. A entrada no Euro, a adaptação ao mundo exigente das regras de segurança e higiene sanitária europeias num setor que nunca conhecera realmente uma regulação a fundo, o recuo da economia numa altura em que o tecido urbano de Lisboa continuava fortemente degradado. O turismo de massas estava limitado ao verão e pouco mais. Apesar disso, a restauração resistiu a todos os embates, incluindo a recessão de 2008, o aumento do IVA para 23%, a carga fiscal demolidora.

Vários anos depois, deu-se a ironia de lançar a minha própria aventura de um estabelecimento comercial dedicado à gastronomia libanesa, numa fase em que Portugal gozava de um invejável boom turístico. Um ano e quatro meses após a abertura, fui forçada a fechar por um período que imaginei temporário, duas a três semanas, para fazer frente à pandemia da Covid-19. Foram dois meses.

Não estava só. Centenas de novos estabelecimentos que tinham aberto em Lisboa numa boa fase económica, viram-se de repente na pior situação possível, i.e. sem a possibilidade de receber clientes e dependentes da Segurança Social para poder manter postos de trabalho. Não há crise económica que possa igualar a devastação que isto traz a um sistema assente em constante faturação.

Já então se falava na possibilidade de uma segunda vaga, no inverno. Não havia certezas, mas não se esperava que atingisse a Europa com tanta força e rapidez. Após um verão em que a mensagem era a retoma da normalidade, rapidamente transitámos para a mensagem de grave responsabilidade individual para evitar novo confinamento. E, chegados a esta fase, o setor está exausto e quase esmagado sob o peso das medidas avulsas incoerentes, da instabilidade de horários e dias de fecho e da imensa burocracia.

Ora, até que ponto as medidas de recolher obrigatório no fim de semana foram eficazes para travar o contágio? Poderão ter sido desproporcionais, tendo em conta o impacto no setor do comércio e restauração? Com uma média de 6.000 casos diários, pode a curva ainda ser achatada com medidas localizadas e cirúrgicas? Em caso negativo, como lidar com um novo confinamento geral quando tantos já estão no fio da navalha após oito meses de crise coletiva?

Espero que as manifestações populares recentes a que assistimos por parte do setor da restauração, e que foram minadas pela extrema-direita, tenham feito soar os alarmes. É nestes momentos que assistimos ao irromper dos populismos mais básicos que pretendem instrumentalizar o desespero e a impotência. O longo arrastar desta pandemia, com custos demasiado elevados, só torna essa instrumentalização ainda mais eficaz. E se não queremos sofrer consequências a nível eleitoral nos próximos anos, a escolha atual de todas as forças democráticas representadas no Parlamento só pode ser uma: não deixar ninguém para trás.