Podemos afirmar, com convicção, que a tourada é um espectáculo explicitamente bárbaro e condenável. Mas esta afirmação é dúbia. Esconde uma ambivalência traiçoeira. Se a condenação convicta recair sobre o espectáculo da violência, a pornografia da tortura, uma certa indecência que as pessoas civilizadas rotulam de obscena, se for apenas isto, então, no fundo, o que dessa maneira estamos a fazer é a liberalizar a violência sobre os outros animais, os de produção, na condição de que seja feita longe dos olhos humanos, desde logo das nossas crianças.

Só que os animais de produção não sentem menos que os touros, os animais de circo e os nossos animais de companhia. E se o igual respeito é um princípio incontornável na maneira como nos tratamos uns aos outros, não há nenhuma boa razão para que não nos sintamos moralmente obrigados a não diferenciar entre os animais o igual respeito que lhes devemos.

Civilizar a violência não significa acabar com ela. Pelo contrário, há toda uma história da violência civilizada, que desumaniza, e que, dessa forma lavada, o que realmente faz é limpar o caminho para a sua massificação. A maior violência, em grande escala, sistematizada, racionalizada, não é proporcionada pela barbárie, mas pela civilização. Zygmunt Bauman bem o evidenciou a propósito do holocausto (“Modernidade e Holocausto”, 1989).

Apesar de todas as diferenças, o que se passa hoje é um holocausto de sofrimento animal na indústria devastadoramente desumanizadora em que se tornou a produção pecuária. Galinhas confinadas ao espaço de folhas A4, bicos guilhotinados a quente para não se ferirem, porcas que não conseguem rodar sobre o seu próprio corpo, patos de fígado inchado apesar das dores atrozes que sofrem, vitelos logo arrancados às vacas, as mesmas vacas logo emprenhadas de novo, os mesmos vitelos serrados em matadouros, meio conscientes, a ponto de o pessoal que tem de encarar este horror sofrer de stress pós-traumático.

Animais que não chegam a ver a luz do dia em momento algum da sua exígua vida, animais disformemente engordados, milhões, milhares de milhões, sujeitados a um rol de torturas que não caberiam dentro do Inferno de Dante, que não viveu a tempo de conhecer o prodígio de inspiração que é a industrialização do sofrimento animal.

Falo aqui de desumanização, mas num sentido trivial que é impróprio, porque, em rigor, um animal não tem de ser humanizado nem desumanizado. Do que se deve falar é precisamente de desanimalização dos animais. Também em relação aos humanos, devia ser a desanimalização, e não tanto a desumanização, a ser denunciada, quando o que estiver em causa for a dor e o sofrimento impostos à mesma carne, osso e nervos, a mesma capacidade de sentir dor e sofrimento, a mesma senciência.

Falar de desanimalização não pretende ser uma provocação. É na verdade o ponto mais importante deste debate e que  pode dar sentido a uma ideia séria e consequente de animalismo. Quando falamos em desumanizar animais já estamos a impor um referencial antropocêntrico. Por isso, deve dispensar-se a ideia de direitos dos animais. Bem como disparates perigosos como chamar-se assassinas às pessoas que comem carne e vestem ou calçam couro. Não devemos pretender resgatar os animais, apesar de sencientes, capazes de sofrimento e alegria, para o campo da humanidade. Não devemos pretender que, depois das mulheres, dos escravos, dos indígenas, serão os animais a próxima etapa desse resgate.

A forma “humanidade” não respeita necessariamente os animais naquilo que é preciso respeitar: a sua animalidade, ou os ecossistemas ou o planeta inteiro na sua própria condição. Simplesmente, a ficção predominante do Ocidente, com raízes que remontam ao texto bíblico, é que fora da forma “humanidade” tudo pode estar ao serviço do humano, tudo pode ser meio, o que hoje significa ser objecto de extrativismo.

Regressando aos animais, a questão não está em constatar que temos tido uma cultura de violência para com os animais, mas que, historicamente, nunca tivemos uma relação tão massiva e industrialmente violenta com animais, em virtude da exclusão civilizada dessa ficção que é a forma “humanidade”.

Achar que só podem ser sujeitos de direitos aqueles que podem igualmente ser sujeitos de deveres, não implica que estes sujeitos de direitos e deveres não tenham deveres também para com o que existe e não é passível de ser sujeito de direitos e deveres. O respeito pelos humanos e pelo “humanizável” não pode esgotar todo o respeito que possamos dever a esse resto que temos tido como disponível para ser usado e abusado sem qualquer contenção a não ser a da conservação eficiente e sustentável do recurso para novos usos e abusos. Tem sido esse o padrão injustificável da nossa conduta: o desrespeito pelo planeta, pelo seu ambiente, flora e fauna, tudo industrializável na mesma medida em que não passa de meio para os únicos sujeitos de direitos e de deveres, nós mesmos.

As exigências de civilidade, mesmo valendo para censurar o espectáculo da tourada ou os maus tratos a animais de companhia, não são propriamente opostas às evocações inflamadas da cultura que defendem, por exemplo, a tourada. Ambas desanimalizam e estão eivadas do mesmo antropocentrismo, ainda que o evidenciem por caminhos diferentes.

A cultura tauromáquica legitima a violência sobre os animais porque, argumenta, encara o animal nos olhos, como se fosse de igual para igual, com respeito portanto. Diz-se ‘como se fosse’ porque obviamente não é nunca uma luta de igual para igual mas apenas uma igualdade simulada, quanto baste. O ponto decisivo é que nessa luta se arranca o animal da sua condição animal para o forçar ao papel de um outro. Francamente, não respeitamos o animal fetichizando-o. Seja o touro enfrentado nos olhos, seja o cãozito enfeitado com laçarote para levar ao concurso canino. Só o respeitamos não o desanimalizando.

Independentemente do mal que possa fazer às nossas crianças humanas assistir ao espectáculo, a tourada é condenável porque inflige maus tratos deliberados e injustificáveis sobre animais que sentem dor e são, indubitavelmente, sujeitos de sofrimento. E, por isso mesmo, a cultura da tourada não é moralmente pior do que a civilidade lavada do matadouro.

Civilização e Cultura são noções com uma história de confronto. A primeira, originária no iluminismo francês, tem uma intencionalidade universalizadora; a segunda, que se articula com uma reacção alemã à primeira, tem uma intencionalidade particularizadora e identitária. Mas esta confrontação está toda ela um tanto empolada. Desde logo porque ambas as noções serviram projectos de poder, de afirmação. Mas também porque na realização de uma sociedade concreta só pôde haver civilização enquanto foi também uma cultura de civilização, portanto, uma cultura.

Ainda assim, as práticas distinguem cultura e civilização. Não há cultura sem cultivo, uma acção de cuidar que continua e desenvolve, como quem mantém viva, ao longo do tempo, uma realidade. Cultivam-se os alimentos, cultivam-se as letras, as artes, os deuses. Cultura será pois tudo o que na vida social e individual dos humanos apenas subsiste por uma prática de cultivar. A natureza é auto-suficiente, a cultura não. Civilização distingue-se de natureza pelas mesmas razões, e nesse sentido é também cultura. Dito isto, historicamente, prevaleceu um entendimento de civilização como uma certa cultura, mais elevada, e portanto contrastando já não com a natureza mas com outras culturas, numa escala que começaria pela barbárie.

Civilização adquiriu o sentido de cultura melhor e preferível, algo normativo e que deve prevalecer sobre tudo o mais, seja dentro de uma dada cultura, seja na oposição a outras culturas. Esta oposição pode ser captada na orientação diversa que civilizar e cultivar privilegiam nas suas práticas. Cultivam-se realidades de fundo cultural, mesmo que estejam dentro de nós, mas o que se civiliza são as pessoas, sejamos nós próprios ou os outros, ou ainda os outros das outras culturas, uns e outros sujeitos de um processo de educação, que também pode ser de assimilação cultural, ou mesmo de colonização.

Civilizar foi exercer uma relação política em que muito cruamente uns impuseram a outros um modo de conduta, persuadidos ou persuasores de que há progresso da humanidade, de que o crescimento de poder e influência, e indicadores de desenvolvimento, seriam medidas razoáveis. Mas também de que esse progresso da humanidade se incorpora na civilidade educada de cada indivíduo humano.

“O processo civilizador” (1939) de Norbert Elias foi uma influente obra de sociologia histórica que procurou evidenciar uma relação entre o desenvolvimento do estado moderno na Europa e o desenvolvimento de códigos de conduta cada vez mais sofisticados. Mas este é também um processo que estipula o que não deve ser visto, ouvido e falado, o que é posto fora da forma “humanidade” por maneiras tão civilizadas como um protocolo de abate num matadouro, um automatismo de depenagem e decapitação de frangos ou um drone militar de bombardeio.

Este agir civilizadamente que garante a ocultação do obsceno, até na mais quotidiana montra de carne embalada, é uma traição da humanidade aos seus deveres que não se perdoa por auto-ilusão. Não é mais inocente que a sobranceria civilizadora que quer ser lei onde possa viver uma pessoa.

É preciso uma outra cultura de civilização, ou simplesmente uma outra cultura, de vida comum à escala planetária, de igualdade entre humanos, de consideração igual para com animais sencientes sem diferenciações artificiais, ou culturais, entre eles, de paridade com os ecossistemas, o planeta, e o futuro de todos estes, o planeta, os ecossistemas, a biodiversidade, as gerações futuras.

Que fazer então quanto aos animais? Seguramente, alguma coisa no sentido de desindustrializar a pecuária. O que passa por opções de consumo que cada cidadão toma em consciência, importando para isso uma sensibilização sobre os impactos ambientais de um ou outro tipo de dieta, de uma ou outra escolha alimentar. Mas passa também por regulação que decorra da iniciativa do poder político. Por exemplo, regular o espaço dado aos animais para habitarem e se moverem, a luz que recebem, o tempo de desmame das crias.

Regular significa, sem ilusões, encarecer a produção e o consumo. Quem compra ovos classe 1 (galinhas ao ar livre) sabe que paga o dobro do que custariam ovos classe 3 (galinhas em gaiolas de 550 cm2 de que nunca saem, sob luz artificial) e mesmo de classe 2 (galinhas em galinheiros imensos, numa densidade de 10 por m2). Mas também sabe que um quilo de carne de frango facilmente chega a ser mais barato do que um quilo de fruta, apesar de os recursos mobilizados na produção do mesmo peso de fruta serem estrondosamente menores. E que isso significa tão só que estamos a passar para o futuro parte da conta que deveríamos pagar agora.

Ainda há cerca de um mês foi tornado público mais um relatório “planeta vivo”, da World Wild Fund for Nature, que dá conta da pegada ecológica que deixamos. Relativamente a Portugal, noticiou-se que a humanidade necessitaria de 2,2 vezes o planeta se quisesse e pudesse deixar a mesma pegada que deixamos. O que mais pesa na pegada ecológica do país é a alimentação e, nesta, a carne pesa significativamente. Se conseguíssemos ao menos reduzir o nosso consumo de  carne a apenas um dia da semana, e de peixe outro dia da semana, a nossa pegada ecológica reduzia-se significativamente.

Há que distinguir aqui entre razões éticas e razões de sustentabilidade. Posso não comer um mamífero porque sei que a sua “produção” implicou sofrimento, muito em especial provocado pela industrialização, ou porque, mesmo não tendo implicado sofrimento, por exemplo se for caçado, não se justifica matá-lo para comer se tenho alternativas alimentares que deixam vivo um animal senciente. Estas são razões éticas. Mas posso não comer tanta carne e peixe gordo porque sei que não dá para todos e que mesmo assim estamos a consumir mais do que o planeta consegue dar. Estas são razões de sustentabilidade e ecológicas.

O interessante é notar que as escolhas determinadas por umas ou outras destas razões tendem a coincidir, como se o planeta nos estivesse a chamar a atenção para uma ética ecológica que não estamos a cumprir. Na verdade, porque ambas as ordens de razões, éticas e ecológicas, resultam do extrativismo, que em tudo vê recursos a explorar, com excepção do que se resgate para dentro da arca da “humanidade”. O planeta não se salva numa arca civilizada. Nem tão-pouco a humanidade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.