Lembro-me de tudo. Lembro-me da minha mãe levar-me pela mão, andarmos de metro e sairmos na estação do Rossio, na Praça da Figueira. Os meus pais trabalhavam à sombra da igreja do Santo António, e por vezes fazia-lhes companhia.

Havia rituais que cumpríamos regularmente. A ida aos mercados no sábado de manhã ou as frequentes visitas à feira dos tecidos ou retrosarias da rua da Conceição. Lembro-me da pequena papelaria, junto à Sé, onde comprei os meus primeiros livros da Disney.

Quando deixei de ler a Disney, a livraria Citação, na rua dos Fanqueiros, tornou-se o meu espaço favorito. Escolhia os meus livros com cuidado, e fechava-me no meu mundo, a explorar as estantes. Na adolescência, adorava passear pelos alfarrabistas. Passava pelas livrarias Lello e Portugal na rua do Carmo, e dava um salto aos inúmeros alfarrabistas na Trindade. Mais tarde, descobri tesouros maravilhosos na extinta Barateira.

Lembro-me de comprar ansiosamente o Diário de Notícias porque estava particularmente interessada na seção do DN Jovem e tinha aspirações de escrita. Mas lia tudo com interesse, ao ponto de colecionar os suplementos DNA e DN+, que me ajudaram a descobrir o mundo das artes e cultura.

Lembro-me das idas ao Martim Moniz para comprar as especiarias que não encontrávamos em mais nenhum outro lugar e que nos ajudavam a matar saudades da cozinha libanesa. Nem tudo eram rosas. Era uma Lisboa de fachadas cinzentas e envelhecidas, a precisar de uma forte reabilitação, e ainda marcada pelo devastador incêndio do Chiado.

Não é nostalgia o que sinto. É frustração e um sentimento de perda. Não foi simplesmente a transição de um velho mundo para um novo. Na última década, assistimos a um lento desmantelar, a uma destruição gradual, sem qualquer cuidado pela preservação da memória e identidade. Assistimos ao fecho do comércio tradicional de bairro e lojas históricas, à ruína de jornais e rádios cujos contributos também fazem parte da vida de uma cidade, ao aumento da xenofobia, racismo e discriminação por uma parte da nossa sociedade que se manifesta contra o crescimento de comunidades imigrantes.

Estamos no meio de uma voragem que destrói tudo o que toca, e já nos esquecemos de tudo o que torna a vida em cidades tão singular e especial. Nunca foi tão importante como agora retroceder caminho e recuperar a memória das nossas ruas e bairros e inspirar novas dinâmicas não apenas em Lisboa, mas algo que possa ser recriado em todo o lado pelos moradores.

O que nos impede de recuperar a comunidade que estamos a perder?