“Não há dinheiro. Qual das três palavras não percebeu?” foi a expressão proferida pelo então ministro das Finanças Vítor Gaspar em 2012 para explicar a necessidade de austeridade no país. Não tardou a tornar-se viral em tempos em que os cortes de salários, pensões, prestações sociais, aumentos de impostos e degradação de serviços sociais eram a regra para tornar Portugal compatível com os ditames da ordem neoliberal.

As dívidas acumuladas ao longo dos anos eram grandes, os benefícios sociais e os salários eram “acima das possibilidades”, a confiança em Portugal por parte “dos mercados” era baixa e os “favores” das instituições europeias estavam esgotados. A única escapatória para resolver este problema de ordem técnica era a austeridade.

Portugal não era caso único, a austeridade foi imposta por toda a Europa, com o caso da Grécia a ser particularmente acutilante. Do outro lado do Atlântico, os Republicanos, em nome da responsabilidade fiscal, lançavam uma ofensiva sem tréguas aos planos dos Democratas para construir algo que se assemelhasse a um Sistema Nacional de Saúde nos Estados Unidos da América.

Avançando para 2020, as questões à volta da existência ou não de dinheiro enquanto problema técnico ou problema político foram-se dissipando: era uma escolha política.

A crise económica desencadeada pelos confinamentos, consequência da Covid-19, foi recebida com uma onda sem precedentes de estímulos económicos: por exemplo, um plano de dois biliões de dólares nos Estados Unidos da América, outro de 1,7 biliões de euros na Alemanha, ao passo que no Japão os estímulos económicos somam perto do equivalente a dois biliões de euros.

Até as instituições europeias mostram capacidade de ter os seus próprios planos, com o Banco Central Europeu a dispor-se a gastar um bilião de euros em dívidas de governos e empresas; e a Comissão Europeia a lançar um plano de estímulos para os Estados-membros da União Europeia, num total de 750 mil milhões de euros. No que toca a Portugal, o pacote apresentado foi de 12 mil milhões de euros. Os planos de estímulos não devem ficar por aqui, tendo em conta que os danos gerados pela pandemia devem continuar a acumular-se.

O contraste entre os dois períodos é gritante. O que antes eram obstáculos técnicos intransponíveis desapareceram. Por todo o mundo, abriram-se portas para atuações por parte dos governos e dos bancos centrais com poucos precedentes.

As mudanças foram drásticas: alterou-se a forma como um banco central pode agir e em que escala pode fazê-lo; as políticas fiscais dos governos foram expandidas; o papel dos Estados na economia foi reconfigurado. Numa questão de semanas – quando se entendeu a enorme escala da crise espoletada pela Covid-19 – todos os critérios foram revistos, e entrou-se numa nova era de política económica. Basta observar a dilatação dos balanços dos principais bancos centrais a nível mundial nos últimos meses para testemunhar a nova escala a que estes intervêm.

A reação não é surpreendente. A quebra económica a nível mundial foi avassaladora. A ausência desta política económica significaria ondas de desemprego, falências e miséria ainda maiores das que já são vividas.

No entanto, não nos podemos deixar de questionar: o que impediu este grau de mobilização de poderes estatais quando a austeridade devastava povos pela Europa? Porque é que os obstáculos financeiros que impediam os Estados Unidos de América de implementar políticas públicas de saúde não se colocavam quando se tratava de continuar guerras no Médio Oriente? Porque é que para resgatar um setor como a banca, que constantemente necessita de resgates públicos, essas mesmas barreiras técnicas nunca se impõem?

Ou ainda melhor: o que impediu e continua a impedir esta nova escala de políticas públicas serem utilizadas para efetuar uma transição energética, quando décadas de ciência climática confirmam que a forma como produzimos e consumimos energia nos faz caminhar para uma crise climática cujos efeitos destrutivos trarão miséria humana a uma escala da qual não existe memória?

Os argumentos técnicos perdem a legitimidade, sobrando assim as escolhas políticas dos Estados para decidir a que problemas dar resposta, e quais os problemas a ignorar. Estas escolhas políticas não se resumem apenas à dimensão da intervenção económica dos Estados, mas implicam também as escolhas dos setores para onde essa intervenção é direcionada.

E quais têm sido as escolhas políticas dos últimos meses em relação aos combustíveis fósseis? O programa alemão oferece uma visão geral. Existe o compromisso de lançar uma fração significativa dos incentivos a um suposto novo setor “verde”. Mas vendo de perto, pouco mais sobram do que apostas em carros elétricos – provados não serem por si só qualquer forma de solução para a crise climática; e projetos de hidrogénio “verde” – que aparenta estar mais destinado a vender gás fóssil como sendo verde do que a produzir energia a partir de fontes renováveis (uma política mundial de greenwashing, também a ser aplicada em Portugal).

O caso particular do altamente poluidor setor da aviação é revelador. Este tem comido uma fatia de leão do que tem sido a intervenção do Estado na economia, com uma onda de resgates a nível mundial. No caso da Air France-KLM 10 mil milhões não serão suficientes para cobrir a fatura. Já a Lufthansa recebeu nove mil milhões dos cofres alemães. No caso da portuguesa TAP, já se aponta para quatro mil milhões de euros de dinheiros públicos portugueses. Se a intenção fosse uma economia assente em energias renováveis, porque razão se torram milhares de milhões para manter aviões no ar?

Ao invés de enveredar por uma verdadeira transição energética, em que os recursos públicos são mobilizados para a transição para fontes de energia renovável, as opções políticas são as de preservar a economia fóssil. Finalmente passou a haver dinheiro, mas não se ultrapassou o “business as usual” de promover os lucros privados e o setor fóssil.

É necessária uma mobilização massiva no sector da energia e restam menos de 10 anos para concretizá-la. Os governos dispuseram de quantidades massivas de dinheiro para tentar salvar o capitalismo dos danos da Covid-19; resta saber se a mesma escala de intervenção é possível para salvar um planeta habitável da voracidade do capitalismo fóssil.

Transição energética já. Qual das três palavras ainda não percebemos?