A mentira e o ódio são a corrupção que precede todas as corrupções. Não só corrompem como tornam impossível qualquer forma de combater democraticamente a corrupção.
Desde há muito, estudos evidenciam que as sociedades com maior confiança interpessoal são as que melhor resistem à corrupção. E não são precisas investigações científicas para perceber que sem escrutínio sério e respeito pela verdade, temos campo livre para a corrupção.
A mentira corrompe a confiança na verdade, e o ódio corrompe a confiança entre uns e outros numa sociedade. Tal como diante do mentiroso deixa de ser possível confiar no que ele diz, diante de quem odeia não se pode confiar que não sejamos os seguintes a ser odiados por ele. O ódio é assim. Um dia são os ciganos, depois os bangladeshis, depois os brasileiros. Aliás, permito-me a pergunta, brasileiros residentes em Portugal que já votaram em Ventura, terão já reparado as vezes que Ventura já menciona ladrões e na mesma frase menciona brasileiros, cá e no Brasil? E portugueses de naturalidade portuguesa, se acham que o ódio não nos atingirá, pois vejam a maneira como Ventura fala com ódio das pessoas de que discorda. Um dia é a “esquerdalha”, outro dia será quem quer que levante uma voz contra. Já não se escusa de acusar que há traidores à pátria e não demorará muito até chegar o dia em que concretizará a acusação em direito a condenar sabe-se lá com que sentença. Este é o tipo de pessoa que não tem a capacidade de conviver com adversários, respeitá-los, e que por isso logo os converte em inimigos a odiar e a tirar de cena. Não duvide nenhum português que, se Ventura mandasse alguma coisa, este seria o caminho, uma descida aos infernos de que os nossos filhos e netos nos acusariam.
A política do ódio é, no seu núcleo, fundamentalmente desleal. Quem hoje é mobilizado para odiar — quem é exaltado como membro do “nós” amado que Ventura recorta a seu bel-prazer (os ciganos estão cá, a nascer e a morrer em Portugal, há 5 séculos) — não passa de instrumento a descartar. O ódio não assenta numa comunidade estável, precisa sempre de novos inimigos para se justificar, e para isso está sempre pronto a virar-se contra aqueles que ontem mobilizou.
Uma política assente no ódio vive, antes de tudo, do acto de seleccionar aqueles que serão designados como alvo. Ou bodes expiatórios, como bem teorizou o historiador e antropólogo francês René Girard. Essa selecção é um processo tão instrumental como instável, que precisa de identificar um “outro” culpado que, uma vez constituído, deve ser perseguido até que outro faça melhor o papel de culpado dos males que não somos capazes de assumir responsavelmente. O facto de um determinado grupo estar, num dado momento, a ser mobilizado pelo discurso do ódio — isto é, a ser incluído do lado dos que odeiam — não o coloca, no entanto, a salvo de poder tornar-se, mais tarde, parte dos odiados. A lógica do ódio é imparável: precisa sempre de novos alvos para se alimentar e justificar a sua própria existência. Até o dia em que acaba devorada pela sua própria lógica.
Não se ama Portugal a odiar e a mentir. Isto devia importar a quem pensa votar Ventura ou já votou nele. A mentira pede outra mentira, o ódio outro ódio.
Só um amor tóxico explica a maneira insensível como a política do ódio faz vítimas colaterais. Ventura é, hoje, uma ameaça crescente para as comunidades portuguesas emigradas tantos são os seus ataques aos Presidentes – a quem chama “ladrões” e diz querer ver presos – e às instituições de países que nos acolhem às centenas de milhar, como é o caso do Brasil, Angola, Espanha. Não sei como se pode ser mais irresponsável e anti-patriota nesta campanha. Apetece parafrasear Augusto Gil: será justiça? Será amor? Amor não é certamente e justiça não bate assim.
E as políticas de ódio e da mentira alimentam-se reciprocamente. A mentira banalizada destrói a confiança no que se diz, não importa se verdade ou não, deixando como resto único e miserável para uma salvação da confiança acreditar no mentiroso, não importa o que ele diga. É a confiança cega que serve, na perfeição, à política do ódio. Há que odiar com ele não importa quem e não importa a razão. Ser fiel, rezando para que a deslealdade não nos escolha, isso é que passa a importar. E o caminho do ódio é fácil. O ressentimento tem sempre motivos, todos temos ressentimentos, haja quem o autorize.
O caminho parece sem saída. O ódio só não nos devorará quanto mais aceitarmos o autoritarismo. Mas não tem de ser assim. O autoritário também sabe que só não acaba devorado pelo ódio se alcançar o lugar de poder em que pode parar o jogo. Ele só se salva politicamente pondo termo à democracia e impondo uma tirania em nome do fim dos corruptos. Como qualquer caudilho. É isso que querem os que amam este país?



