Férias de praia é reencontrar, como não poderia acontecer no dia a dia dos locais de trabalho e das casas que habitamos, os anos anteriores das mesmas férias de praia, como se uma maneira perfeita de estar e de ser simplesmente aguardasse pelo reencontro anual que faz o intervalo para o resto do ano e do seu frenesim.

Há outros lugares de férias que fazem esse intervalo, o campo, a montanha, os resorts, mas a praia de mar onde o país, de norte a sul, desagua, tem uma cadência própria. Ano após ano, os mesmos chapéus-de-sol de toda as cores, os mesmos corpos de todas as idades, os mesmos jogos, castelos de areia, sons, vozes, risos, chorinhos de crianças, e a brisa, o vento que vira uns dias e outros não, os mergulhos.

A praia, território social

Enquanto continuarmos a ser feitos de corpo desejoso de sol, água e horizonte, e enquanto continuar a haver praias, este misto de ritmo lento e imobilidade reencontrar-nos-á como um ambiente natural. Ir à praia é matar saudades do que não muda porque não tem de mudar, como uma liberdade de não ser forçado a nada e que vem desde que se tem memória, ainda crianças pequenas soltas que brincam na praia como peixe na água.

Há algo nas praias que se intemporaliza ao longo da vida de uma pessoa de carne e osso. E que a faz sentir-se mais parte do mundo, confortável apesar de todas as diferenças, fisionomias, status, desigualdades. Explica este conforto igualitário sobretudo a elementaridade como comparecemos na praia, os corpos que trazemos e pouco mais, a toalha e os chinelos, tralha para entreter, alguma novidade mais arrojada, nada que questione uma igualdade intemporal do prazer do Sol, do banho e da areia. Tudo o mais é demais e depressa incomoda.

O rectângulo de areia que precisamos de ocupar há-de ser parecido, um pouco maior agora com a pandemia, mas de forma igual para todos, na medida da necessidade. E, claro, não pagarmos para entrar na praia, nem para estender a toalha, gozar o Sol e o mar.

Esta é a experiência da igualdade da praia, pelo menos enquanto não privatizarem o areal, esse bem comum precioso e que deve ser sempre mais extenso do que a concessão dada a barraquinhas, palhotas e toldos. Em Portugal, é um privilégio tanta costa de praia, tanta possibilidade de lazer ao alcance de todos, até pelos mesmos transportes públicos que levam as pessoas ao trabalho em Lisboa e Porto todas as outras épocas do ano. É só ir na direção oposta. A praia é território social, tanto quanto a escola pública é estado social, com a diferença de que é dado.

Felizmente, ao contrário do que sucedeu em boa parte da costa mediterrânica, em Portugal as praias não foram privatizadas na fúria da oportunidade do investimento lucrativo. Ao contrário da floresta pública, residual no nosso país, a praia em Portugal permanece livremente acessível. Ao menos no que respeita à praia não fizemos tudo errado. Também pelo seu valor turístico. Mas se fosse apenas o turismo que contasse facilmente teríamos privatizado como na Grécia. Algo resistiu positivamente. Talvez por não termos sacrificado às vantagens do turismo uma relação identitária, e popular, com a praia dos fins de semana e das férias.

E ainda bem. Todas aquelas crianças, jovens, adultos, velhos tranquilos, de guarda baixa, trocando impressões enquanto molham os pés, distraidamente, ou chapinham em preparos infantis sem excessiva preocupação com quem está a ver. Dentro dos limites da boa formação, importa apenas a preocupação de não incomodar o gozo alheio.

A praia protege sem paredes à volta. É como a segurança de casa, a mesma indolência, mas num mundo anónimo, com todo o horizonte em diante. Se o dia for quente e a água do mar fria mas calma, as pessoas plantam-se na água pelos joelhos como se fossem um bosque inundado. A liberdade da imobilidade ou o devir como se fosse uma planta, a sentir correntezas nos pés a fazerem raízes na areia do fundo.

A praia, tempo-liberdade

Ao fim de muitos dias, o contínuo de praia seca olhos e pele, como se, em vez de pior, pele e olhos ficassem melhor porque regressassem assim ressequidos e gretados a um estado mais selvagem, mais próximo das formas elementares da natureza e da existência. A barba já não é cortada, nem o cabelo lavado. O mar leva todos os dias os motivos de desconforto que justificam esses hábitos. Apanhado com moderação, o Sol aquece na vez de roupas. E o mar refresca na vez de aparelhos de ar condicionado. Alguém há-de passar com bolas de Berlim, ou traz-se de casa algo que roer e beber.

Com o passar dos dias de férias e das marés, escolhem-se mais os começos e os fins dos dias para estar na praia, quando o sol faz a tangente ao mar e à terra, e a brisa a tangente às areias repisadas. Como o banho com o sol a pôr-se, cada braçada a estilhaçar mil reflexos. Ou as sombras alongando-se desproporcionadas.

Talvez também por isso ganha-se um esgar rente às coisas depois de muitos dias de praia. Ouve-se e observa-se mais distraída e demoradamente a superfície das coisas. Numa espécie de solidão com as coisas em volta, o tempo que se gasta no que se faz deixa de importar. “Aqui o tempo apaixonadamente / Encontra a própria liberdade”, escrevia Sophia de Mello Breyner Andresen.

Pode chegar-se a desoras onde quer que fosse o destino a que se ia, casa ou jantar em que não importa a que horas seja servido. E no caminho que leva da praia ao destino, interrompe-se o andar com qualquer coisa que prenda o olhar. Qualquer coisa, ou duas ou três, tornam-se encantadoras nesta solidão com as coisas, nesta companhia do tempo.

As férias de praia libertam o tempo da aceleração a que nos condenamos colectivamente. E descolam-nos também da ordem estabelecida, que afrouxa e deixa respirar, como aquele beijo para a eternidade entre Burt Lancaster e Deborah Kerr, abraçado pela rebentação no mar, a fazer escândalo mesmo dado todo o desconto às liberdades da praia.

Entregues aos prazeres de um picnic num jardim público, o tempo também se distende, mas não com a força subversiva deste tempo derramado que invade a vida toda. Levadas às últimas consequências, as férias de praia são o perfeito intervalo da ordem da vida em esforço.

Ainda assim, a praia é vulnerável à privatização que a priva à grande maioria, à ostentação que desigualiza, às muitas tentações invasivas, desde a música que já ocupou grande parte das esplanadas e o ruído das máquinas até aos comportamentos demasiado chamativos, a forçarem a atenção, a levar para a praia o regime da intensidade.

Contudo, não sei se fruto da pandemia ou de um sentido de praia mais apurado e partilhado, este ano os biquínis lembram os dos anos 70, bem simples, no espírito do conforto da praia. Dorme-se ao pôr de sol, há topless, pessoas esbeltas e pessoas menos esbeltas igualmente felizes, serenas, na sua. Atrás ouve-se a rebentação, a percorrer de lés a lés a linha que divide o areal do mar, modulando o efeito de Doppler da onda a quebrar-se, e a entrar em ressonância com os pensamentos e tonalidades de cada consciência.

A praia, pele global

A praia é o lugar por excelência do intervalo, mas certamente não por acaso este lugar excepcional, que por ser tão abundante não protegemos o suficiente, é também o mais ameaçado pela falta do intervalo. Imparáveis, as alterações climáticas, com emissões de gases de estufa, aquecimento global, degelo das calotes polares e, por isso, mais aquecimento global, trarão subidas do nível das águas que galgarão a costa que faz a terminação sensível do país.

Necessariamente, primeiro ou ao mesmo tempo que as povoações ribeirinhas, as praias serão engolidas. Um dia, com probabilidade elevada, Portugal será um país sem praias. Estreitará a ocidente, pelo mar, e não haverá combates e fortalezas de outros tempos que guardem fronteiras. Na verdade, termos praias em Portugal dependerá muito menos dos 10 milhões aqui residentes, 4/5 deles na faixa litoral, do que das demais oito mil milhões de pessoas do mundo, embora a grande maioria da população global seja ainda mais vítima passiva da acção de uma minoria global de que seguramente somos parte.

Publicado este ano, o livro “Portugal, Ano 2071”, da jornalista Isabel Lindim, dá-nos a projecção bem informada para o próximo meio século de que Portugal é o país mais vulnerável da Europa. E esta semana tornou-se público o 6.º relatório do IPCC – The Intergovernmental Panel on Climate Change (ipcc.ch), organismo constituído pelas Nações Unidas para avaliar a produção de ciência relevante para as alterações climáticas, o que já lhe valeu o Prémio Nobel da paz em 2007, ainda que todo o reconhecimento pouco tenha mudado o estado de coisas do planeta em matéria climática.

Na sua apresentação, Valérie Masson-Delmotte a co-presidente do Grupo que preparou o relatório, chamou-lhe um “reality check”, o que, ironicamente, se traduz em português por um “um banho de realidade”. Um banho que não queríamos, mas precisamos de tomar.

As férias de praia, com tudo o que de bom têm, procuram disfarçar, como se tudo estivesse bem, o mal dos oceanos. Por exemplo, o Guincho é lindo por ser tão intensamente o mar e as ondas. Mas, quando fora da época em que se limpa a praia, também é a imagem perturbadora do que o mar traz de volta: plástico, mais plástico e lixo. Talvez fosse bom inverter a perspectiva: a praia como uma pele, não do país, do continente, do chão firme que pisamos, mas do oceano que connosco confina. Uma pele global que nos sente tanto quanto a sentimos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.