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Rogério Alves: “Nota-se o preconceito do Governo para com a segurança privada”

Antigo bastonário da Ordem dos Advogados foi convidado do “Falar Direito”, programa transmitido todas as sextas-feiras, às 11h00, nas redes sociais e site do Jornal Económico.
10 Março 2019, 09h00

O convite de um responsável da Prosegur convenceu o ex-bastonário da Ordem dos Advogados a assumir a presidência da Associação de Empresas de Segurança. Entre as suas prioridades estão o combate ao incumprimento no setor e aos preconceitos do Governo em relação à atividade de segurança privada.

Como foi parar ao setor das empresas de segurança? É uma área em que o conhecimento da lei é importante.

Isso terá sido ponderado por quem me convidou. É um setor que conhecia mal, mas gosto de desafios com significado. Neste caso, procurar fazer algo útil pela dignificação e prestígio da atividade de segurança privada, que é muito importante no quadro da segurança nacional.

Há muita preocupação com o combate à informalidade de empresas que não cumprem regras. A revisão da Lei da Segurança Privada, a decorrer no Parlamento, está a ir no bom sentido, em sua opinião?

Ainda não, mas pode ser colocada no bom sentido se a sensibilização que temos feito junto dos grupos parlamentares, e a recetividade que vários manifestam, der frutos.

Em que áreas?

Falaria em três áreas cruciais, nas quais existe enorme consenso entre a nossa associação e os sindicatos. A primeira é a chamada responsabilidade solidária, ou seja, quem contrata uma empresa de segurança privada fica responsável perante os trabalhadores da empresa, a segurança social e o fisco.

É uma proposta que, no fundo, visa combater as más práticas?

Claro. E as más práticas consistem em algo que se fecha numa frase: trabalho não declarado. Trabalhadores que trabalham mais do que o contrato mandaria, mais do que a lei permite que se trabalhe e sem receberem as contrapartidas que a lei e o contrato coletivo estabelecem para o trabalho extraordinário, noturno e fins de semana.

Além disso, quem não cumpre regras concorre de forma desleal. Isso preocupa o setor?

Não pode haver concorrência leal entre quem cumpre regras e quem não as cumpre. Uma das nossas lutas é que, se no momento da contratação de uma empresa de segurança privada, o cliente se arrisca a contratar uma entidade que tem lastro de incumpridora ou que tem presságio de vir a ser incumpridora, nomeadamente em função do preço praticado, então vamos responsabilizar quem contrata.

Acha que os clientes vão pensar duas vezes antes de optarem por empresas de vão de escada? O Estado também tem esse problema.

Exatamente. O Estado não só deveria pensar duas ou três vezes como deveria dar o exemplo.

O Estado contrata empresas de segurança a preço de saldo.

Com certeza. E que pressagiam situações de incumprimento. Isto não tem nada a ver com não pretender concorrência. As empresas da nossa associação concorrem entre elas e concorrem com outras.

Dentro das mesmas regras?

Exatamente. Com o cumprimento das regras. E a par da responsabilização de quem contrata, que seria uma maneira de sanear o mercado, e de pôr tudo com base na lei – impedindo fenómenos de trabalho não declarado, de clandestinidade e não declaração de horas -, propomos aquilo a que chamamos inspeção inteligente. Basta pegar nos contratos, nas horas que envolvem, nos horários em que se de­senvolvem (por exemplo, à noite), em quantos trabalhadores estão envolvidos na operação, e veremos se a equação fecha no final.

As contas têm de bater certo.

Ora bem. Quanto é que está no recibo, quanto é que efetivamente foi pago, o que foi descontado para a segurança social e quanto foi descontado para o fisco.

Olhar para uma folha de Excel, basicamente…

Já ultrapassámos umas artroses que o Estado sempre tem, porque A não pode falar com B, e depois há a proteção de dados. Não é verdade. Já demonstrámos que, com recurso a fontes abertas e públicas, é possível fazer essa ligação. É, sim, preciso vontade política.

As vossas preocupações foram transmitidas aos partidos?

E ao Governo.

E como é que o Governo reagiu às vossas sugestões?

Nem sempre como gostaríamos. Por vezes, fica acantonado em posições que não compreendemos. No âmbito do Conselho de Segurança Privada, que aconselha os ministros da Administração Interna, foi formado um grupo de trabalho que produziu um relatório convergente com as nossas posições. A PJ, PSP, GNR, BdP, empresas nacionais, associações sindicais e patronais, votaram favoravelmente as conclusões desse relatório. O Governo tem levantado alguns obstáculos, nomeadamente na questão da responsabilidade solidária. Falamos de um mercado que está a ser absolutamente destroçado por más práticas, e nós queremos combatê-las.

Isto pode ser transposto para outros setores? Há muitas empresas de trabalho temporário…

No trabalho temporário já existe. Aliás, é uma das demonstrações que não é a tal invenção da roda. Já existe no trabalho temporário, como já existe em matéria da empreitada. O que está em causa é sabermos se queremos que o setor continue a perder postos de trabalho, a fazer perder milhões de euros de receita fiscal e para a segurança social e a comprometer a concorrência leal. É um setor com dezenas de milhar de trabalhadores e que tem feito, apesar de tudo, um esforço para, dentro desta antipatia que às vezes o poder público lhe dirige e dentro do que as más práticas provocam, um esforço muito grande de saneamento. Exemplos disso são o contrato coletivo de trabalho que a associação de empresas de segurança subscreveu com os sindicatos e que prevê a dois anos um aumento salarial próximo dos 20%.

Este aumento só é possível havendo este controlo?

E poder-se-ia fazer mais e muito melhor caso se tomassem medidas corajosas para impor as regras no setor.  No âmbito desta nova lei, há também uma alteração que está relacionada com o transporte de valores, que passa a ser feito em veículos normais até 150 mil euros.  Esse foi o apontamento extraordinário, a que não chamo ‘cereja em cima do bolo’ porque as cerejas e bolo embelezam. Ao longo de meses, houve discussões sobre a revisão do regime de segurança privada, da alteração das leis e da portaria, e jamais se falou nesse tema. E porquê ? Porque, presumo eu, a situação atual não só tem permitido que a atividade de transporte e tratamento de valores funcione com grande segurança, tranquilidade e grande nível de aprovação, como a legislação em vigor, essa tal que estamos agora a repensar, obrigou as empresas de transportes de valores a investimentos de milhões de euros. Sem que ninguém se apercebesse, sem nunca ter havido um anúncio prévio, na versão final da lei, onde na atual diz que a partir de 15 mil euros o transporte, em regra, deve ser efetuado por entidade habilitada para o efeito, este valor duplica dez vezes, passando de 15 mil para 150 mil euros.

No fundo, qualquer um passa a poder transportar dinheiro. Qual é a explicação?

A única explicação genérica que tenho é que se nota, por vezes, em alguns apontamentos e sobretudo neste, algum preconceito que este Governo sente em relação à segurança privada, que é para mim incompreensível, porque a segurança privada, apesar de fustigada por estes problemas, tem-se integrado na comunidade de forma absolutamente pacífica. Assistimos hoje com tranquilidade à vigilância privada nos aeroportos, nos espetáculos desportivos e musicais, nas fábricas, nos prédios e escritórios. Portanto, a atividade desenvolve-se com grande tranquilidade.

Acha que este governo tem um preconceito contra este setor?

Há algo que não conseguimos compreender. Temos muita esperança de que o Parlamento possa purificar esta questão. Porque o transporte de valores invoca vários problemas. Em primeiro lugar, é um xeque-mate às empresas.

Imagine o carregamento das caixas de multibanco, que é sempre abaixo dos 150 mil euros.

É uma questão de segurança.

Como é óbvio. Aliás, os polícias terão ficado com os cabelos em pé e manifestaram-no diversas vezes.

Têm falado com a PSP sobre esse assunto?

Claro que sim. Está tudo esclarecido. Tal como com a PJ e outras entidades presentes no Conselho de Segurança Privada. Ficaram surpreendidas. Como é que se transporta esse dinheiro? No autocarro, numa mala, no carro, nas mãos? É um chamariz para os assaltos, no duplo sentido de que o dinheiro andará ao ‘Deus dará’, embora não se possa invocar o nome de Deus em vão; em segundo lugar, quando uma carrinha de valores circulasse, se esta norma fosse aprovada, toda a gente saberia que havia mais de 150 mil euros. E depois há o próprio controlo do dinheiro. Vivemos numa sociedade empenhada em combater o branqueamento de capital.

No fundo, a lei permitirá que grandes quantidades de dinheiro mudem de mãos facilmente.

É uma coisa totalmente incompreensível.

Tem esperanças que isso venha a cair na versão final?

Tenho. A passagem das leis ou dos projetos de diploma pela Assembleia da República não é um ritual. Temos dado por muito bem emprege o tempo em que temos procurado sensibilizar os partidos políticos para pontos de vista que nos parecem totalmente razoáveis ao ponto de serem partilhados pelos sindicatos. Se quisermos pensar noutro tipo de consequências, os trabalhadores das empresas de transporte de valores viram o seu posto de trabalho ser colocado em causa, porque retiraram o objeto do trabalho aos seus empregadores. Depois de todos os investimentos que fizeram e depois de termos atingido uma taxa invejável de segurança e de estabilidade.

É quase um convite a assaltos…

Não se consegue compreender. Estou convencido que as pessoas irão reconsiderar e irão voltar ao bom caminho.

“O que se tem feito na nossa justiça é a técnica Herodes”.

A justiça portuguesa deve ser menos burocrática e com uma linguagem mais próxima da realidade?

Muito mais próxima da realidade e com mecanismos processuais que permitam transformar megaprocessos em menos mega. Poderíamos começar num trabalho conjunto com o Ministério Público e os advogados da defesa e assistentes, um trabalho de levantamento de factos que todos considerassem estar demonstrados e onde não teriam de haver provas em tribunal.

Há exemplos internacionais?

Há. Mas nós temos a mania de comparar a nossa justiça com a de outros países, e a nossa sai a ganhar em muita coisa.

Nas garantias aos arguidos, por exemplo.

E não só. Até na velocidade. Os problemas que existem em Portugal existem em muitos outros países. Não somos uma ilha de lentidão num mar de velocidade. Muito longe disso. Se conseguíssemos fazer isto que estou a dizer nos processos grandes poupávamos 60% das audiências.

Isso impediria certas manobras dilatórias por parte das defesas…

Tudo o que se faz de garantias é uma manobra dilatória. O que é uma coisa extremamente danosa.

Reconhece que esse fenómeno existe?

Existem manobras dilatórias como também existem truques feitos pela investigação. Quando o Estado é visado num processo e perde uma ação no Tribunal Administrativo, também exerce manobras dilatórias, também recorre, também argui nulidades. As manobras dilatórias são como o colesterol, andam espalhadas por todo o lado. O que o sistema tem é de separar o trigo do joio. Verificar exatamente o que é exercício legitimo de direitos e reprimir ou castigar as puras manobras dilatórias. O que se tem feito na nossa justiça é a técnica Herodes, que mandou matar as criancinhas por querer matar uma criancinha em particular, o que acabou por não conseguir. O nosso sistema está a fazer a mesma coisa. Arrasa com tudo à procura do “culpado” e depois deixa o culpado e arrasa as garantias e os inocentes.

O atual bastonário da Ordem dos Advogados, Guilherme Figueiredo, vai recandidatar-se e o presidente do Conselho Regional de Lisboa, António Jaime Martins, já disse que perspetiva o mesmo. Qual lhe agrada mais?

Vou aguardar um pouco para ver o que ambos dirão. Apoiei nas últimas eleições o Dr. Guilherme Figueiredo e tenho a minha opinião. Em algumas coisas concordo, noutras concordo menos. Em princípio, emitirei a minha posição publicamente quando forem conhecidos todos os candidatos a bastonário. Há desafios tremendos que se colocam e a Ordem tem preocupações vitais – a primeira é não perder representatividade na advocacia, continuar a falar pelos advogados na sua diversidade.

Guilherme Figueiredo tem conseguido fazê-lo?

Creio que tem tentado. Às vezes consegue mais, outras menos, como tudo na vida. Mas há aqui grandes batalhas em torno do segredo profissional, em torno da desregulação, em torno das sociedades multidisciplinares… Ainda há pouco tempo vi a OCDE fazer uma crítica às ordens profissionais, dando como exemplo a Ordem dos Advogados.

A Ordem é contra as sociedades multidisciplinares. Concorda com essa linha?

Por regra sim, embora admita que é uma batalha muito próxima de estar perdida. Acho que a multidisciplinaridade é inevitável. A maneira de se manter a advocacia absolutamente focada e firme e inabalável nos seus fundamentos é encarar a mudança. Para mim, um advogado é um advogado na área do corporate, do fiscal, aquele que acompanha um cliente na compra de um banco, e aquele que faz as defesas oficiosas.

Então a Ordem deve representar todos, na sua opinião?

Sim, porque o essencial da advocacia está presente na nossa ética e na nossa deontologia, na defesa do segredo profissional.

Apoiará o candidato que for ao encontro dessa preocupação?

Será o que for mais promissor na gestão da nau, da nau que atravessa momentos muito difíceis.

Artigo publicado na edição nº 1977, de 22 de fevereiro, do Jornal Económico

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