Eram os tempos da eleição presidencial brasileira de 1989. Por um acaso, eu estava de férias no Rio de Janeiro e vivia fascinado com o espetáculo televisivo dos tempos de antena, que, naquele país, têm uma extensão temporal equivalente ao peso relativo dos partidos que apoiam cada candidato. Recordo-me bem de um dentista barbudo, chamado Enéias, que surgia por breves segundos, só tendo tempo para dizer: “Meu nome é Enéias!”

À época, estava em construção a imagem vencedora de Collor de Mello, um candidato sob os favores televisivos da Globo, que o transformava em “mais igual” do que outros. Entre estes, avultava a imagem do líder sindical Lula da Silva, uma figura de discurso engrolado, fácies grave e léxico agressivo. Longe vinham ainda os tempos de 2003, do Lula “paz e amor”, da “carta ao povo brasileiro” que seduziu os meios económicos e lhe faria ganhar o caminho de esperança para o Planalto.

Nesses dias de outubro de 1989, o então cônsul-geral de Portugal no Rio, José Stichini Vilela, convidou-nos para um almoço de domingo, a que estava presente um importante empresário brasileiro. A conversa derivou, a certo passo, para a segurança, ou melhor, para a insegurança – nesses tempos ainda a anos-luz da tragédia que hoje o Rio atravessa.

O empresário contou que residia numa moradia num ponto alto da cidade, próxima de uma conhecida favela. À nossa curiosidade sobre a sua relação com a vizinhança, esclareceu que tinha, com os líderes daquela comunidade, uma espécie de “gentlemen’s agreement” que, em princípio, o isentava de riscos. Mas contou-nos que, à revelia desse “acordo”, a sua casa fora um dia assaltada. O empresário contactou então os seus interlocutores na favela que, surpreendidos e desagradados, prometeram atuar. E assim aconteceu: “Em poucos dias, apareceu tudo o que fora roubado”, referiu. E, com voz indiferente, isenta de emoção, acrescentou, em jeito de detalhe: “Ah! E os corpos dos bandidos também…”. À volta da mesa, algumas faces gelaram perante a naturalidade assumida da vendetta. Mas não, ao que me pareceu, as dos convivas brasileiros.

A ditadura militar, que marcara os dias do Brasil por duas décadas, até quatro anos antes, mantinha-se então viva, e bem positiva, na memória do empresário. Como o estava na de Jair Bolsonaro, que agora vai ser o próximo presidente do Brasil e que, curiosamente, seria eleito pela primeira vez para um cargo público no sufrágio desse ano. O regime que perseguiu, prendeu, torturou e matou muitos brasileiros, colando as suas instituições às que padronizaram a vida latino-americana de então, manteve sempre os seus defensores no país.

Pensava-se, porém, que seria um sentimento minoritário, residual, desaparecido sob as vantagens da democracia. A perceção destas não foi, contudo, suficiente para contrabalançar os medos, as inseguranças, as raivas e a desilusão, capazes de credibilizar uma aposta no absurdo. Se, há uns anos, uma presidência desta natureza iria provocar, pela certa, uma reação escandalizada do mundo, hoje os tempos mudaram e o absurdo tornou-se no novo normal.