29 de Março

Trump decide receitar aos seus concidadãos uma mistura de hidroxicloroquina (derivado de quinino) e azytromicin, com base num  artigo científico que circula na net sem revisão por pares e escrito por dois supostos académicos com passado de trafulhices e condenações por crimes avulsos. Mas Trump também já disse que a vacina está próxima (quando sabemos que um ano é o mínimo que temos de esperar) e que, com o calor, o vírus “miraculosamente vai-se embora” (o que é desmentido pela realidade da pandemia em África, América do Sul e Austrália).

Ocorre perguntar porque não sujeitam o presidente americano à devida acusação penal, dado que nos EUA, como em todo o mundo, o exercício da medicina sem habilitação legal constitui crime… Era o mínimo! Mas este é um exemplo em como o sistema constitucional democrático norte-americano, tido como o supra-sumo dos “cheks and balances”, está longe de responder com eficácia aos desmandos de um presidente alucinado.

Surpreendentemente, o Brasil – que não está no top das democracias mundiais – mostrou melhor comportamento, com um tribunal do Rio de Janeiro a proibir o presidente Bolsonaro de manter uma campanha contra o isolamento social (e contra a política do seu ministro da Saúde), alegando que tal constitui uma decisão contrária à evidência científica e põe em risco o direito à vida dos brasileiros.

Mas o espantoso é que a história da hidroxicloroquina faz capa do “Expresso” como uma espécie de solução milagrosa que a Ordem dos Médicos estaria a estudar. A história surge contada com fumos de credibilidade e declarações de um professor de medicina do Porto, que sustenta as vantagens preventivas da administração da droga. A “New Yorker”, como sempre, tem um exaustivo artigo sobre o assunto e revela que,  à conta do quinino, o consumo de gin cresceu subitamente na última semana nos EUA .

30 de Março

A France Inter, numa peça intitulada “O mistério português”, explica que o nosso aparente controlo da pandemia, e sobretudo a diferença abissal face aos números espanhóis, deve-se à disciplina do povo que se confinou mesmo antes do poder ter mandado, ao facto de termos um governo estável que se mantém vai para cinco anos, ao bom desempenho económico pós crise de 2009, com redução dos “deficits” – que permitiu manter um bom SNS –, ao isolamento geográfico (que permitiu que o vírus chegasse mais tarde) e à existência de uma única fronteira que facilmente se fecha (Espanha). Nem tudo bate certo mas boa parte dos argumentos fazem sentido. Oxalá o “mistério” resulte…

31 de Março 

Há quem fique impressionado com o Papa a rezar na Praça de São Pedro vazia. Eu fico mais impressionado com uma premonitória BD do suíço Jared  Murad intitulada “La Chute”, posta à venda a semana passada mas concebida em 2014 (segundo o autor), em que quase tudo da pandemia actual lá está. E depois impressiona-me mais Ursula Le Guinn, Robert Heinlein ou Philip  K. Dick!

2 de Abril

Para onde quer que se olhe, cá dentro ou lá fora, as notícias, os debates e as polémicas são iguais. O vírus apagou tudo o resto. No entanto, há quem dê tratamento jornalisticamente competente e bem informado ao tema. É o caso do canal francês BFMTV, onde vi uma reportagem sobre a rápida disseminação geográfica da pandemia em França. Um encontro em meados de Fevereiro, que confinou 2.000  evangélicos de todo o país num pavilhão em Moulouse, durante cinco dias, foi o centro da propagação francesa.

Por esses dias ainda Macron saltitava entre multidões e só se falava do escândalo Griveau, o candidato do La Republique em Marche apanhado num vídeo de conteúdo sexual. A propagação foi rápida porque os participantes no evento não estavam identificados e regressaram aos seus domicílios em toda a França (até à Guiana francesa). Não foi assim possível às autoridades cortar as cadeias de transmissão. A reportagem confirma a ideia de que as autoridades públicas europeias não estavam minimamente preparadas, pese embora os avisos de alguns para lidar com a situação.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.