No rescaldo das eleições americanas, levantam-se vozes de esperança na recuperação da velha ordem internacional, dita pré-Trump. Nos EUA, retomam-se discussões sobre os acordos de Paris, repensa-se a relação com o resto do mundo em geral e com a China em particular e discutem-se problemas internos, numa tentativa de “limpar a casa”, como caracterizado pelo “The Economist”. Vários sinais parecem indiciar obstáculos a este objetivo.

Em primeiro lugar, as posições do presidente eleito, Joe Biden, que não é indiferente ao reconhecimento de que terá sido uma América empobrecida pela crise financeira de 2008 que se terá deixado atrair pelo discurso de Trump, enquanto simultaneamente continua a reconhecer na China uma ameaça externa, tal como o seu antecessor.

Em segundo lugar, as dinâmicas internacionais que se instalaram durante a transformação vertiginosa imposta pela pandemia, nas quais a China foi sobressaindo como potência económica, tornando-se a primeira economia em paridades de poder de compra (FMI, janeiro 2021) e em que as restantes economias emergentes não se saíram assim tão mal.

A política de Biden pretende não só romper, como inverter a política anterior, em aspetos que vão da resposta à Covid-19, passando pela recuperação da economia interna com um novo e significativo estímulo fiscal e terminando na redefinição dos compromissos internacionais e relações externas. Os Estados Unidos, cujas últimas previsões do FMI apontam para uma quebra da atividade económica em 2020 da ordem dos 3,4%, um valor abaixo da média prevista para as economias avançadas (4,9%) e sobretudo da zona euro (7,2%), tem as ferramentas económicas necessárias para recuperar.

Segundo o FMI, serão das poucas economias avançadas a sair da crise em 2021, graças ao seu plano orçamental. Mas há uma crise política instalada e um populismo galopante que não vão desaparecer só porque Trump não está no poder. Biden, que defende o investimento em infraestruturas, cuidados de saúde, e investigação e desenvolvimento, defende também, nas suas palavras, uma política externa para a classe média. A tónica de vencer a China continua presente, agora com argumentos mais civilizados, como garantir a democracia e a defesa dos direitos humanos. Economicamente, no entanto, indicia a intenção de manter ou abrir novas guerras comerciais.

Por seu lado, a China, que se afirmou e cresceu sobretudo nos últimos 30 anos, tem prevista uma taxa de crescimento positiva da ordem dos 2,3%, e esperam-se das recuperações mais fortes à escala mundial em 2021. Uma parte deste sucesso resulta de a região ter exportado para o resto do mundo muitos dos bens necessários para resolver a crise sanitária. O seu dinamismo relativo justificará também porque muitos investidores se terão voltado para os mercados bolsistas asiáticos.

Ciente deste dinamismo e provavelmente receando os comportamentos do novo presidente americano para o qual a segurança económica é a segurança nacional, Xi Jinping terá alertado em Davos para o risco de uma nova Guerra Fria. A China, com o seu regime político poderá, no entanto, constituir o único obstáculo à sua maior afirmação económica.

A maior surpresa nas novas dinâmicas económicas internacionais reside talvez nas economias emergentes. Um estudo do Banco Mundial concluía existir uma correlação positiva entre maiores níveis de PIB per capita e maior número de mortes por milhão de habitantes. Talvez por terem populações mais jovens, com sistemas imunitários mais fortes ou, por simplesmente terem menos meios para fazer contagens, a situação surge como menos grave nas economias emergentes. Isto significa também que são as economias mais ricas as que tiveram, ou estão a ter, confinamentos mais severos e prolongados e, portanto, a infligir maiores quebras aos seus níveis de PIB per capita.

O desempenho das economias emergentes foi assim relativamente positivo, caindo apenas 2,4% em média, metade do valor previsto para o mundo avançado, sugerindo uma aproximação entre as caudas de distribuição do rendimento per capita pelas razões inversas das habituais, isto é, pela contração relativa das economias mais ricas.  A manterem-se estas dinâmicas, a ordem económica mundial será profundamente alterada, quiçá entrando numa nova fase.

Talvez por tudo isto, recentemente, figuras como Emmanuel Macron, Angela Merkel, Macky Sall, António Guterres, Charles Michel e Ursula von der Leyen tenham sentido a premência de afirmar a necessidade de cooperação multilateral para assegurar a recuperação da economia global. Certamente anteveem que a pandemia terá vindo acelerar e reforçar a alteração na ordem mundial que já se estava a desenhar há algum tempo, e que, mais do que limpar a casa, será necessário renovar as suas fundações.