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Novos movimentos sindicais respondem à alteração económica

Não é uma questão de número, mas de impacto das greves na população, além de muita controvérsia em torno do financiamento e serviços mínimos. Eis as causas e efeitos das transformações em curso.
11 Maio 2019, 08h00

Formado há poucos meses, um sindicato constituído por 800 motoristas quase paralisa o país; vários sindicatos de enfermeiros recorrem a “crowdfunding” para financiar greves por tempo indeterminado; um novo sindicato de professores cria um fundo de greve e assume o objetivo de endurecer a luta social. Está em curso uma revolução na atividade sindical em Portugal?

Na perspetiva de Elísio Estanque, sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, “as novas tendências do mercado de trabalho” estão a originar “estas formas de ação coletiva mais inorgânicas, mais localizadas, mais espontâneas”, fenómeno resultante do “enfraquecimento da atividade sindical tradicional”. Tal enfraquecimento deriva também das “novas tendências da economia, com um mercado de trabalho cada vez mais fragmentado, a crescente facilidade de deslocalização das unidades de produção, empresas ou serviços, os efeitos do desenvolvimento tecnológico e da automatização do trabalho, entre outros fatores”.

Por outro lado, Estanque aponta para o fenómeno de precarização do trabalho, sublinhando que “os precários não estão a organizar-se” e, como tal, verifica-se “um vazio de representatividade sindical para uma parte significativa dos trabalhadores, sobretudo entre os mais jovens”. O investigador do CES considera que essa falta de organização ou vazio de representatividade sindical advém de um “défice de consciência cívica, no contexto de uma sociedade muito atomizada e despolitizada”. “Os jovens precários não confiam nos sindicatos, não se revêem na cultura do movimento sindical, não participam, não se organizam, mas isso acontece também porque estão demasiado focados na sua própria sobrevivência. A instabilidade e as dificuldades são de tamanha magnitude que não têm disponibilidade para a atividade sindical”, diz.

Retomando o foco nas transformações da economia, alerta para “um mercado de trabalho mais flexível, mais instável, mais precário, o que se traduz numa menor capacidade de defesa dos trabalhadores”. “É um processo em curso desde há décadas, no qual os trabalhadores estão a perder, gradualmente, os mecanismos de proteção que tinham conquistado no pós-Segunda Guerra Mundial. E por causa do aumento das dificuldades, ou da violência das condições de trabalho, há determinadas classes profissionais que estão a ganhar consciência da sua importância para o funcionamento da sociedade e utilizam isso como forma de luta e reivindicação, como aconteceu recentemente com os motoristas de matérias perigosas”, explica.

Nesse âmbito, Estanque diz que “há um grande risco de manipulação por potenciais líderes que organizem esse descontentamento em movimentos populistas”, como que “preenchendo o vazio de representatividade”, em substituição dos “sindicatos mais antigos que continuam a funcionar numa lógica mais corporativista e focada nas carreiras”. E como é que o poder político deve lidar com os novos movimentos sociais? As iniciativas já anunciadas de alterar a Lei da Greve não poderão ser contraproducentes, intensificando a reação dos visados? “Julgo que deve ser feita uma reflexão sobre a escassa representatividade de alguns desses movimentos, pequenos grupos que conseguem paralisar o país”, limita-se a responder Elísio Estanque, optando por não se referir a alterações específicas na lei da greve. Em relação às novas formas de financiamento, tais como o “crowdfunding” utilizado pelos sindicatos de enfermeiros na denominada “Greve Cirúrgica”, defende que devem ser estabelecidas “regras de transparência”, no sentido de se saber quem contribui, evitando assim “processos nebulosos” que levantam suspeitas.

Independentes e apartidários

Para o advogado César Sá Esteves, sócio da SRS Advogados, especializado em Direito Laboral e de Segurança Social, “não há grande novidade” na recente greve dos motoristas de matérias perigosas ou no recurso ao “crowdfunding” pelos sindicatos de enfermeiros. No que respeita aos motoristas, Sá Esteves considera que se tratou de “uma greve clássica” organizada por um sindicato, cuja única surpresa terá sido “o facto de nos apercebermos de como um grupo muito restrito de trabalhadores é capaz de paralisar o país, expondo vulneralidades que desconhecíamos”. Quanto ao “crowdfunding”, embora reconhecendo que é uma “forma inovadora” de financiamento, lembra que “os fundos de greve existem há muitos anos”, pelo que também não identifica aí “uma grande transformação”.

Questionado sobre a emergência de novos movimentos sindicais inorgânicos e o acréscimo de conflitualidade social ao longo do último ano, Sá Esteves contraria desde logo a ideia de “movimentos inorgânicos”, na medida em que são sindicatos legalmente formalizados. “E sempre houve sindicatos mais especializados, mais corporativos, como o Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminhos-de-Ferro Portugueses (SMAQ), defendendo grupos de trabalhadores mais restritos”, acrescenta.

Na ótica de Sá Esteves, o que distingue o Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas é sobretudo “a independência, quer em relação às grandes centrais sindicais, quer em relação à influência de partidos políticos. A novidade é essa e também o impacto que demonstraram ser capazes de provocar”. Quanto à conflitualidade social, considera que “não tem sido muito elevada”, ou pelo menos “está em níveis normais para um ano com três eleições. O que há é um maior impacto das greves na população e um maior mediatismo em torno dos seus efeitos”.

Quanto a putativas alterações na Lei da Greve, o advogado diz que “faz sentido refletir sobre a matéria, na medida em que o direito à greve, embora seja inquestionável, parece ser excessivo nos moldes em que está a ser exercido”. Sá Esteves aponta também para o problema da “interpretação mínima dos serviços mínimos”, cuja requisição pelas autoridades “deveria ser mais ambiciosa”. Na sua perspetiva, a insuficiência ou até incumprimento dos serviços mínimos amplifica o impacto das greves. “Esse impacto dá um poder enorme aos sindicatos e provoca grandes desequilíbrios na negociação com as entidades patronais”, alerta.

Sinais de mudança em organizações sindicais:

A surpresa dos motoristas de matérias perigosas

O Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP) foi criado no final de 2018 e representa cerca de 800 de um total de quase 900 trabalhadores. Começou por ser uma associação, mas como a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) considerou que não tinha legitimidade para negociar, acabou por se converter em sindicato. No dia 15 de abril, o SNMMP lançou uma greve que, inesperadamente, ameaçou paralisar o país nofim-de-semana da Páscoa,com o objetivo de reivindicaro reconhecimento da categoria profissional específica, distinguindo estes trabalhadores da categoria geral de motoristas de veículos pesados. Também exigia a cessação do pagamento de ajudas de custo de forma ilegal (propondo integrar esses valores no salário-base), salientando que os trabalhadores eram prejudicados em situações de baixa médica, entre outras vertentes de proteção social, nomeadamenteo cálculo dos descontos para futuras pensões de reforma. Através da mediação do Governo, o SNMMP ea ANTRAM acordaram suspender a greve, comprometendo-se a negociar coletivamente até ao final do ano.

Enfermeiros apoiados por “crowdfunding

A denominada “Greve Cirúrgica” dos enfermeiros dos blocos operatórios de hospitais públicos, realizada em dois períodos distintos (em dezembro de 2018 e fevereiro de 2019), além do grande impacto na população (milhares de cirurgias adiadas), destacou-se pela inovação de recorrer a uma plataforma de “crowdfunding”. As duas greves foram convocadas por duas estruturas sindicais, embora inicialmente o protesto tenha partido de um movimento de enfermeiros que lançou publicamente recolhas de fundos para compensar os colegas grevistas que ficam sem ordenado por aderir à paralisação. Ao todo, para as duas greves, recolheram mais de 740 mil euros. Este modelo de greve foi considerado inédito em Portugal, não só devido à sua duração como pela criação de um fundo de recolha de dinheiro para financiar os grevistas. Aliás, no início de fevereiro, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) anunciou que iria avançar com uma investigação, com o objetivo de validar todas as informações dadas pelos enfermeiros em greve quanto à origem dos fundos, averiguar quanto foi o dinheiro angariado e se haveria incompatibilidade nas doações.

Nova via nos professores para “fazer luta a sério”

O Sindicato de Todos os Professores (STOP) foi criado no início de 2018 e o seu principal dirigente, André Pestana, avisou desde logo: “Vamos fazer luta a sério”. Essa luta tem sido uma constante desde então, focada na contabilização do tempo de serviço dos docentes. Já esta semana, o STOP anunciou a criação de um fundo de apoio a situações de greve, tornando-se no primeiro sindicato de professores (são 23 no total) a contar com um fundo de greve. Pestana salientou que o fundo de greve é um dos caminhos para ajudar os professores a encetar lutas fortes e prolongadas em defesa dos seus direitos e carreiras, numa altura em que é patente a descrença da classe nos sindicatos tradicionaisdo setor. O STOP considera que“há cada vez mais docentes não sindicalizados e sem esperança nos sindicatos tradicionais, face a sucessivos momentos em que todos os sindicatos não têm estado à altura das oportunidades e necessidades da classe docente”. Mais, declara-se contra a interferência de agendas partidárias na luta dos docentes ea utilização de “formas de luta obsoletas” e de “pára-arranca” que levam à descrença dos professores nos sindicatos tradicionais e à desmobilização da classe.

Estivadores precários bloqueiam portos

A paralisação do porto de Setúbal, no final de 2018, teve a particularidade de não ter sido realizada através de uma greve formal. Na medida em que cerca de 90% dos estivadores eram precários, sem contrato fixo, apenas se recusaram a trabalhar. A greve ao trabalho suplementar em todos os portos nacionais foi convocada pelo Sindicato dos Estivadores e da Atividade Logística (SEAL), contra a precariedade em Setúbal e “a perseguição aos sócios do SEAL por discriminação salarial em Leixões e Caniçal”. Prolongou-se desde agosto até 14 de dezembro de 2018 (chegando a paralisar o porto de Setúbal durante cerca de um mês), quando o SEAL e os operadores portuários, sob mediação do Governo, chegaram a acordo para o retorno ao trabalho dos estivadores. O acordo previa a passagem a efetivos de 56 trabalhadores precários. Entretanto prosseguem as negociações sobre um novo contrato coletivo de trabalho para o porto de Setúbal, cujo prazo de conclusão foi adiado esta semana para o dia 8 de maio. Apesar do acordo de dezembro, aliás, o SEAL, logo a 2 de janeiro de 2019, apresentou um novo pré-aviso de greve com duração de quase seis meses.

Artigo publicado na edição nº 1986, de 26 de abril, do Jornal Económico

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