A recente proposta de alargamento do prazo para a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal reacendeu um debate que muitos julgavam encerrado. Quase duas décadas após o referendo que despenalizou o aborto até às 10 semanas, os partidos de esquerda tentaram, sem sucesso, estender esse limite para 12 ou 14 semanas.

O resultado?

Um chumbo previsível que expôs as profundas divisões ideológicas que ainda persistem na sociedade portuguesa sobre este tema tão sensível. No centro da polémica está uma simples questão matemática: duas a quatro semanas.

 A polarização do debate

Para os proponentes, esse curto período poderia fazer toda a diferença para milhares de mulheres que se veem forçadas a viajar para o estrangeiro ou a prosseguir com gravidezes indesejadas.

Para os opositores, representa uma linha vermelha que não estão dispostos a cruzar, argumentando que o prazo atual foi legitimado por referendo popular.

O debate parlamentar expôs as profundas divisões que persistem na sociedade portuguesa sobre o tema do aborto. Como tem sido frequente em questões controversas, o país mostrou-se polarizado, com opiniões fortemente contrastantes entre os diferentes grupos políticos e sociais.

Esta fragmentação ideológica reflete uma tendência mais ampla na política contemporânea, onde o consenso em temas sensíveis parece cada vez mais difícil de alcançar.

De um lado, partidos como PS, BE, PCP e Livre defenderam o alargamento do prazo, o fim do período de reflexão obrigatório e uma regulamentação mais rigorosa da objeção de consciência dos médicos. Do outro, PSD, CDS-PP e Chega formaram uma barreira intransponível, votando em bloco contra qualquer alteração à lei vigente.

Os argumentos a favor do alargamento são variados. Desde a harmonização com as recomendações da Organização Mundial de Saúde até à redução das desigualdades regionais no acesso à IVG, passando pela diminuição do número de mulheres forçadas a recorrer a clínicas espanholas.

Os defensores da proposta argumentam que o prazo atual é um dos mais restritivos da Europa e que sua extensão não representaria uma mudança radical, mas sim um ajuste necessário. Por outro lado, os opositores invocam o respeito pela vontade popular expressa no referendo de 2007. Argumentam que alterar a lei sem nova consulta popular seria antidemocrático e que o prazo atual oferece um equilíbrio adequado entre os direitos da mulher e a proteção da vida intrauterina.

O futuro do debate

Esta tentativa frustrada de alterar a lei do aborto levanta questões importantes sobre a evolução dos direitos reprodutivos em Portugal. Será que o referendo de 2007 “congelou” indefinidamente o debate sobre o tema? Ou será legítimo que o parlamento possa rever periodicamente a legislação à luz de novas evidências científicas e mudanças sociais?

A realidade é que, apesar do chumbo, o debate está longe de terminar. As estatísticas mostram que, embora o número de IVG tenha diminuído nos últimos anos, ainda há mulheres que enfrentam obstáculos significativos para conseguir exercer este direito.

Barreiras geográficas, disparidades regionais no acesso aos serviços de saúde e a prevalência da objeção de consciência entre profissionais médicos em certas áreas do país continuam a criar muitas dificuldades.

Essas dificuldades não só comprometem o acesso equitativo à IVG, mas também podem levar a atrasos no processo, potencialmente forçando algumas mulheres a ultrapassar o limite legal estabelecido ou a buscar alternativas menos seguras.

A questão do aborto continua a ser um tema que divide profundamente a sociedade portuguesa, equilibrando-se entre considerações éticas, científicas e políticas.

Democracia como pilar fundamental

A perceção de que decisões tomadas via referendo podem ser alteradas pelo parlamento ameaça a confiança dos cidadãos no processo democrático. Essa sensação de desvalorização do voto pode desincentivar a participação cívica e enfraquecer a participação em futuros referendos.

Embora o parlamento tenha legitimidade para adaptar as leis às novas realidades sociais, é essencial que o respeito pela democracia direta prevaleça, especialmente em questões decididas por referendo. A confiança nas instituições e a legitimidade das decisões populares são pilares fundamentais para uma sociedade democrática e participativa.

Portanto, qualquer alteração significativa a uma lei aprovada por referendo deve passar pelo mesmo processo de consulta popular. Isso não só preserva a validade das decisões democráticas, como também fortalece o compromisso coletivo com os princípios que sustentam a nossa democracia

O debate sobre o aborto em Portugal demonstra que questões éticas complexas continuam a desafiar o consenso social. Contudo, no centro desse debate, a defesa dos valores democráticos deve ser o guia que orienta as escolhas da sociedade. Em tempos de polarização, é no respeito pela vontade popular e nos alicerces da democracia que encontraremos o verdadeiro caminho para a justiça social.