Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley em 1932, permanece como uma das grandes distopias literárias do século XX. Nessa visão profética, o autor desenha um futuro onde o ser humano acaba por ser dominado — não pela opressão violenta, mas pelo conforto anestesiante das suas próprias invenções. Mas isso é talvez (ou não) outra história.

Hoje quero falar-vos de outro “admirável mundo novo” — não literário, mas real. Um mundo que se redesenha à velocidade da inovação tecnológica e que está a transformar profundamente a forma como nos relacionamos com o automóvel, com a mobilidade e, em última instância, com o nosso quotidiano.

Estamos, sem exagero, perante uma das maiores revoluções de sempre no setor automóvel. E esta revolução não é apenas tecnológica. É estrutural, cultural e geracional.

A começar pelo consumidor. As novas gerações — nativas digitais, hiperconectadas, mais conscientes e financeiramente flexíveis — mostram-se cada vez menos interessadas na posse de um automóvel. A propriedade, que durante décadas simbolizou conquista, independência ou estatuto, dá agora lugar à lógica do acesso.

Para muitos, o automóvel deixou de ser uma extensão do ego. Passou a ser uma resposta funcional — contratualizada em renting, partilhada por carsharing, ativada por subscrição. O paradigma é claro: usar sim, ter… talvez não.

Este novo modelo, sustentado em plataformas digitais e impulsionado por uma maior sensibilidade ambiental e económica, transforma radicalmente o mercado automóvel. A viatura já não é o fim, mas o meio. E com isso, tudo muda: o marketing, o pós-venda, a fidelização, a forma como se pensa o próprio produto. Não se compra um carro — acede-se a uma solução.

Mas a disrupção não se fica por aqui. A próxima fronteira já se adivinha no horizonte: a condução autónoma. Se o automóvel puder deslocar-se sozinho com segurança, conforto e eficiência, o que restará do papel do condutor?

O gesto quotidiano de pegar no carro e enfrentar o trânsito poderá tornar-se obsoleto. E com isso, paradoxalmente, a condução poderá voltar a ser aquilo que foi para muitos antes de ser obrigação: prazer.

Num cenário onde conduzir deixa de ser necessidade e passa a ser escolha, o “gosto de conduzir” poderá renascer como experiência lúdica, como escape, como memória do toque humano numa era de algoritmos. Conduzir para desfrutar — não para chegar.

E quando os automóveis forem elétricos, autónomos, silenciosos, conectados e, em muitos aspetos, estandardizados… o que os distinguirá verdadeiramente? Será ainda a marca o principal fator de decisão? O emblema na grelha frontal continuará a importar?

Ou ganharão relevo outros atributos — o conforto, a experiência digital, o ecossistema de serviços, o infotainment, a integração com os nossos dispositivos e rotinas?

A resposta não é única. Porque esta transformação acontecerá a diferentes velocidades. O que hoje é tendência nas grandes cidades europeias poderá demorar a chegar aos meios rurais ou a países em desenvolvimento. A transição será assimétrica, mas inevitável.

Neste cenário em mutação acelerada, é legítimo perguntar: estaremos a caminhar para um novo Admirável Mundo Novo da mobilidade?

Acredito que sim. Mas, ao contrário da distopia de Huxley, este mundo pode ser melhor — se assim o quisermos. Mais eficiente, mais sustentável, mais racional. Mas também mais humano, se não nos deixarmos engolir pelo automatismo das soluções e pela ilusão de que a tecnologia resolve tudo.

Acredito sinceramente que, para o consumidor do futuro, o automóvel não será apenas uma máquina, mas uma nova ideia de mobilidade, de liberdade e da forma como nos relacionamos com o tempo.