A vitória de Joe Biden – pedindo desde já desculpa a quem acredita que, qual Elvis Presley, Trump ainda vai voltar – criou uma onda de alívio em todo o mundo.
Se, em 2016, não obstante a estranheza de ver surgir na Casa Branca uma figura com aquele recorte, alguma réstia de expetativa de bom senso ainda podia existir, depois destes quatro anos, a simples possibilidade da renovação do seu mandato era um susto para a sensatez.
Há mais de um século que América é uma potência que determina ou influencia fortemente, pela positiva ou pela negativa, os rumos da vida internacional. Mesmo em cenários onde não se jogam os seus interesses diretos, os Estados Unidos acabam por funcionar sempre como um poder condicionador dos movimentos de terceiros.
Sempre assim tem sido, mas nunca se tinha assistido a uma afirmação tão despudorada da preeminência dos interesses americanos, em detrimento dos interesses dos outros, sem o menor respeito por regras e com total descaso, não apenas dos compromissos, mas igualmente do comportamento que, em todos os casos, se esperaria de um aliado.
O que se passou na atitude de hostilidade que a América de Trump assumiu face à Europa – combatendo a União Europeia, nomeadamente favorecendo o Brexit, criando tensões na Nato e revelando uma imensa falta de atenção por aliados fiéis – ultrapassou tudo o que se supunha possível numa ordem global que, mesmo sob crises, costuma respeitar algumas “liturgias”, que são uma espécie de “boas maneiras” em que se baseia o diálogo e a convivência internacional.
Um mundo em paz é gerido por um misto de interesses e de princípios, com estes a limitarem a expressão crua dos primeiros – assim diferenciando a convivência entre os países de uma selva institucional. A cooperação, a solidariedade e até um certo património histórico de relacionamento fazem parte da matriz dessa convivência.
Ver a maior potência mundial tornar-se no principal fator disruptor dessa ordem, ao assumir-se como um ator egoísta, imprevisível e quase sem baias normativas, foi uma imensa surpresa para os amigos da América.
O alívio de que falei no início do texto foi assim um sentimento comum em várias partes do mundo. Pensar em quem pode estar a lamentar a saída de Trump talvez nos ajude a perceber melhor o que essa saída traz de benéfico.
Tenho para mim que, por muitos que tenham sido os efeitos negativos do consulado de Trump, à escala global – e poderia elencar vários – nenhum teria maior gravidade, se acaso ele tivesse sido reconduzido na Casa Branca, do que a questão climática.
O negacionismo ambiental que levou Trump a abandonar o Acordo de Paris foi uma atitude de uma extrema gravidade, porque todos sabemos o efeito simbólico, para os mais graves poluidores mundiais, que a autoexclusão americana representa. Só por isso, se mais não houvesse, e há, a vitória de Biden deveria ser amplamente saudada.