Tempos houve em que o mundo se virava para a América como o herói de último recurso. Foi assim quando a Europa, incapaz de resolver os seus conflitos e controlar impulsos primitivos, imperiais ou fascistas, teve de chamar o primo americano para vir resolver o problema das duas Grandes Guerras. Foi assim quando necessitou reconstruir-se depois da devastação de 39-45, estendendo a mão ao Plano Marshall. Foi assim quando, perante a ameaça moscovita, lhe confiou a defesa do nosso continente até que o muro caísse. Foi assim muitas outras vezes…
Foi assim quando as epidemias de Ébola ameaçavam devastar África e alastrar-se pelo mundo. Foi assim quando o Haiti soçobrou perante um devastador terramoto. Foi assim quando a Etiópia e a Eritreia precisaram de simples alimento perante fomes devastadoras. Foi assim quando Bush filho criou o PEPFAR, o fundo de mais de 80 mil milhões de dólares para combater a SIDA em África, que muitos consideram o seu maior feito, tratando mais de dez milhões de pessoas ao longo do tempo.
Quando tudo parecia falhar, o mundo sabia perfeitamente que podia contar com o gigante americano para o ajudar. E era ver as reportagens dos enormes aviões cinzentos estampados com as letras de US Air Force a aterrar em aeroportos recônditos e desembarcar centenas de fardos da USaid com a inconfundível e estrelada bandeira americana bem visível. E o mundo perdoava aos Estados Unidos as suas faltas de tato, as suas tentações isolacionistas porque afinal, como dizia Churchill, “pode sempre contar-se com os americanos para fazer o que é certo, depois de tentarem tudo o resto”.
E eis-nos chegados à presente crise. Nem um avião da USaid foi fotografado a chegar a Itália. Em Espanha, país onde se encontra uma das maiores bases militares americanas, em Rota, nem um ventilador, nem um hospital de campanha chegaram dos EUA. O mesmo se pode dizer de quase todos os países europeus e de África nem falar.
Poder-se-á dizer que os Estados Unidos enfrentam um problema similar e que nem a si próprios conseguem acorrer. Mas o que diferenciava os EUA dos outros países era a sua capacidade científica e médica (no famoso Centre for Disease Control, em Atlanta, o CDC) de prevenir o mundo antes da ocorrência das epidemias para que não se transformassem em pandemias. Foi isso que fizeram com o ébola e com a Sida.
Em vez da USaid, o que vemos são os países a virarem-se para a China. Aviões chineses com as suas listas azuis e letras negras aterram em Itália, República Checa, Espanha e, em breve, Portugal. Não só porque o país tem a capacidade produtiva para nos ajudar como, pior ainda, é nele que os governos europeus, africanos, asiáticos e alguns sul-americanos vão beber políticas sanitárias, e é na China que procuram soluções. Estamos perante a maior transferência de poder de uma superpotência para outra que a história já presenciou, uma alteração de tão profundas consequências geoestratégicas que apenas podemos antecipar que nada voltará a ser como dantes.
O gigante é agora um anão, submerso pela ignorância arrogante do seu presidente, uma espécie de Nero que perante o vírus que mata os seus concidadãos, prefere cantar as loas da sua “esperteza”, lançar a dúvida sobre a ciência, insultar jornalistas, e proclamar que a “cura não pode ser pior que a doença” garantindo que dentro de quinze dias tudo terá que voltar ao normal porque senão, a crise económica levará as pessoas ao suicídio.
Se os três anos da presidência de Trump ainda deixavam dúvidas quanto ao acerto de algumas das suas políticas, esta crise sanitária encarregou-se de enterrar este homem e o seu país. A partir de agora desconfiaremos definitivamente dos americanos e dos seus dirigentes e respeitaremos mais os chineses e os seus políticos.
Quem perdeu foi a democracia ocidental, aquela que baseada em valores da antiga Grécia e no judeu-cristianismo nos deveria transportar a níveis sempre superiores de prosperidade, liberdade e felicidade. Não pelos valores que lhe estão na base. Mas, ao permitir que personalidades como Bolsonaro, Trump e outros de igual jaez se tenham apropriado do poder, consentimos que o fundamental se submetesse ao espúrio, cedemos aos nossos impulsos primários e demitimo-nos da nossa obrigação de ser, como votantes, os primeiros e últimos guardiões da decência humana, aquela mesma que nos permite distinguir o Bem do Mal.